segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

downtown

J. querida,

Você me pergunta como vai a vida, mas não conseguiria lhe escrever sobre isso. Só consigo pensar em como vai a Morte, como sinto Ela nem mais se esgueirando. Antes parecia que se escondia. Agora ando pelas ruas e A vejo estampada nos rostos medrosos, nos anúncios coloridos, e principalmente nas vitrines e em seus reflexos. A Morte tomou conta da cidade, tomou conta de todos nós. E hoje me tocou.

Andava pelo centro, bem perto daquela confeitaria da nossa adolescência. Por uns minutos, segundos talvez, nos vi ali. Eu, naquela paixão suada e silenciosa. Você, num daqueles seus amores que duravam uma matiné e um sorvete. E que terminavam sempre em nós dois, enquanto você me dizia que nenhum deles adivinhava que você era já uma moça madura e preferia milk shake. E querida, por favor, não tente me convencer novamente de que você estava esperando por mim. Nada me doeria mais do que ter te perdido sem nem mesmo saber, então prefiro pensar que você disse isso com aquele seu sorriso ambíguo de quem está medindo reações, prestes a soltar uma gargalhada jogando a cabeça pra trás sabendo que tem o mundo aos seus pés.

Nenhuma gargalhada por aqui. Andava, perdido nessas memórias que mais pareciam invenções, quando uma mulher me pegou pela mão. Me olhou com uns olhos secos de não ter mais nada. E não disse palavra. Estava num desespero oco que foi entrando pela minha pele, sem me deixar saber se era um quente, um frio ou um choque elétrico. Você bem sabe as lágrimas que eu tenho acumuladas em mim, e tudo o que quis naquele momento foi dá-las para ela. Mas antes que pudesse, ela se foi. Me soltou. Talvez decepcionada por eu não ter esboçado nenhuma reação, qualquer que fosse. Ou talvez ela só quisesse algum calor, e eu deveria realmente ser o único por ali sem luvas. Sei que ela se foi. E eu não tentei impedir. Não tentei salvá-la.

Minha querida, tenho certeza de que essa mulher morreu. Estou sentindo isso em mim, essa proximidade com a Morte. Tenho medo d’Ela ter conseguido penetrar pelos meus poros. Porque na cidade agora é assim. A Morte é contagiosa e certeira, e eu vejo os moribundos andando pelas ruas vestidos de preto. Todos se dirigindo aos próprios enterros.

Mas não vou me preocupar. Sei que um abraço seu irá me curar, como já curou tantas vezes. E aí, a vida e as cores. Sim, estou fazendo o possível para ir visitá-la. No Natal, se tudo der certo. Me pergunto se as crianças ainda se lembram desse tio postiço distante, cuja tosse o impedia de brincar nos jardins. E sei que quando eu chegar você estará vestida de flores, e com cheiro de flores.

J., não deixe que nosso amor seja nada além disso: flores e milk shake.

Seu, para sempre,
E.

3 comentários:

Anônimo disse...

WOW!

Anônimo disse...

Adorei as cartas e como em algumas delas você mistura estilos e tons.

volto mais vezes com certeza! e espero que você volte outras vezes ao casa de espelhos. O texto do Alagadiços deve virar série, mas só daqui a pouco...

beijos

Mari disse...

eu hein não saiu o nome... para deixar registrado então: Mari.