terça-feira, 18 de dezembro de 2007

da cotovia e do catavento

Um dia, a menina acordou e sua cotovia na gaiola não cantava. Não se levantava. E nem se mexia. Foi perguntar para a mãe, e esta foi tão clara quanto doce:
- Minha filha, a cotovia foi pro céu.

E ela, é claro, não entendeu como é que a cotovia foi pro céu estando deitada, logo ali. E porque é que não preferiu ir para o céu voando, cotovia que era. E pensou que ela não estaria quietinha não cotovia se não fosse a gaiola dela menina, que não deixou a cotovia ir inteira inteira pra bem longe, tendo que deixar o corpo pra trás.

E aí que chega o pai, e como que lê o pensamento e diz assim minha filha, cotovia não é bicho de ficar em gaiola. É bicho de voar solto, cantar solto, comer solto e morrer solto pra solto viver. Como todo bicho que vale a pena. Tendo grade ao redor ou não.

E foi dizendo tirando a bota do pé, abrindo a camisa no peito, lavando o rosto do pó, abraçando a mãe num cheiro sujo gostoso por trás e finalmente a olhando no olho.

E a menina viu, naquele olhar de olho igual ao que a menina via quando olhava no espelho, que a cotovia era como o pai. Bicho solto que tá aqui passando, e vivendo vida vivida e cantada e voada, mas que é maior que qualquer gaiola, seja ela feita de mundo ou de carne e osso.

E viu ali naquele olhar que um dia o pai também ia criar umas asas de fazer bicho solto voar tão alto quanto queria.

E a menina viu, ali naquele olhar maior que o olho, a felicidade da certeza de que final era começo e que começo era aventura e que aventura era viver e que viver era mais do que aquelas rugas de tempo e que tempo não existia, era só a menina lembrar o que sentia quando andava a cavalo ou corria com os cachorros ou rodava rodava a saia ou nadava no rio e olhava embaixo d'água.

E a menina viu que o pai viu que ela viu e pouco tempo de gente durou aquela cumplicidade de um tocar de almas, mas o bastante pra de água encher os olhos e os dois saberem que não haveria lição maior que aquela.

A menina então levou a cotovia, ou o corpo que nunca da menina fora, e enterrou coberta de terra. E sentiu o pesar de uma dor de perda, e chorou lágrimas de lavar menina, pai, mãe e cotovia. E rezou uma reza qualquer antes de olhar pra cima e saber ali que havia descoberto ser livre. E que ficaria sempre o canto da cotovia e o giro do catavento.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Rio

Querida,

Estou escrevendo porque bateu agora uma saudade, tremenda, de você. Nunca tinha pensado nisso, mas será que tremenda tem alguma ligação etimológica com tremer? Não sei. Sei que está frio, e não chega a ser tanto, mas essa chuva me faz querer ainda mais estar te abraçando naquela cama pequena que nos incomoda nos dias de calor. Saudade do seu mau-humor monossilábico de quem quer esconder os pensamentos para ter os pensamentos desvendados. Ou de quem simplesmente queria ter dormido um pouco mais.

Saudade do seu bom-humor frouxo, seu sorriso por trás do cigarro, os copos que você quebra quando vai esbarrando no mundo, inadvertidamente no seu caminho quando se lembra de que pode ser leve, e essa leveza que tira seu pé do chão e pode te dar um medo de ser levada embora. E do gosto do seu beijo nessas horas em que você me deixa voar junto ao invés de cortar as próprias asas. Acho que nunca te contei isso, mas no dia daquele primeiro beijo, antes daquele primeiro beijo, eu olhei pra você e você tinha asas e elas estavam fechadas e eu achei um desperdício tão grande que você não estivesse voando, talvez sem nem saber que podia. E quis te beijar ainda mais, e no beijo foi que eu te entendi um pouco pela primeira vez. Porque com você assim perto deu pra sentir o peso que é carregar umas asas fechadas o tempo todo. Saudade de te entender um pouco mais a cada beijo. E da maneira como tudo o que você fala contradiz a sua boca, e como eu aprendi a acreditar mais nela.

Saudade do seu peso em mim. E do medo que eu tinha de que você sentisse o quanto o meu coração batia forte, e de como assim ele batia ainda mais, e do pacto tácito que a gente fez de se ensinar a não ter mais medo. E de como não ter medo com você me fez ter menos medo do mundo. Mas principalmente do mundo que eu vejo quando estou do seu lado.

Querida, bateu agora uma saudade tremenda de mim. Volta logo. Que o violão não agüenta mais ser afinado todo dia.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

morango com cacau

Às vezes, eu preciso que você me lembre que eu sou doce. Como quando eu fiquei do seu lado. Só para estar lá. Só para não te deixar sozinho com a sua dor. Mesmo sem conseguir chegar perto e te abraçar. Mas aí vem você, e diz que não. Que eu fui doce quando consegui pedir para você ficar. Comigo. Para não me deixar sozinha. Com a minha dor. E me entreguei num abraço. Salgado.