sábado, 1 de novembro de 2008

mesa de flor

Eu não quero mais
Sentir isso que me aperta tanto o peito
Toda vez que chego perto da grandeza
Quando entre outros meu olhar encontra o seu

Eu só quero a paz
De algum dia dividirmos algum feito
Seja um abraço, seja um samba ou seja a mesa
De uma casa de flores você e eu

Não sei sobre isso de nomear as coisas
Não posso te pedir pra se deixar levar
Não vou te dar anel, não te prometo o céu
Pois não te quero para te aprisionar

Estranho ter que dizer tantas vezes não
Se o que mais quero é te ouvir dizendo sim
Pergunta ausente, eu sei, e tu não sentes?
Que essa resposta é pra você e não pra mim

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

samba mal-criado

Já tá marcado o casamento
Morena, diz o que eu posso fazer
Do que importa o sentimento
Pequena, isso que eu sinto por você

Não vou dizer que ele veio de repente
Nem no clichê chamar de avassalador
Só sei que deixa o meu corpo-alma quente
E eu só posso chamar ele de...

A cidade inteira reservou a data
Se perguntando porque é que não veio antes
Dona Judith, o prefeito, o padeiro, toda a nata
Que vai ser dia de dançar com os amantes

E eu que nunca nem chamei meu bem assim
Não estarei pra ver o derradeiro sim
Tenho medo de nem ser mais ela no altar
Vou me afogar logo no primeiro bar

Seus pais vão estar mais do que felizes
E perguntando quando o neto vai chegar
Suas tias se esquecem das varizes
E vai ser toda a burguesia a suspirar

E eu que nunca nem chamei meu bem assim
Não estarei pra ver o derradeiro sim
Se sou covarde e desisto sem tentar
Eu não mereço a cachaça mais vulgar

Enquanto a festa só regada a espumante
Ninguém se lembra o que está a comemorar
Vai a pequena com seu passo hesitante
Queria vida, queria estar em outro lugar

sábado, 23 de agosto de 2008

do hoje

Hoje tudo me parece déjà vu. Todas as minhas frases já foram proferidas. Meus insights são os mesmos do ano passado. Minhas angústias do anterior. Minhas espinhas da adolescência.

Escrevendo dois e-mails tive certeza de estar escrevendo as mesmas coisas para as mesmas pessoas, com alguns meses de diferença. Cheguei a conferir. Segundo o Gmail, foi só impressão. Dei alguns conselhos bebendo cerveja. Nada de novo. Engraçado. Quando vem essa sensação de repetição, eu não me sinto mais eu. É como se eu estivesse representando a mim mesma, numa versão anterior. E, se é assim, onde estou eu agora? Pra onde fui? Será que eu não mudei nada nesse tempo? Será que o tempo não passou, não passa, é só ilusão? E o perigo que é quando me surge a palavra "ilusão". Eu duvido um pouco de mim. Do mundo. Da realidade. Se torna mais palpável a ficção. E eu me sinto a um passo de me perder.

Talvez por isso a arte. Pelo sentido e as respostas que eu encontro, ou pareço encontrar, nela. Talvez por isso não a filosofia. Pelo medo das dúvidas que se juntam às minhas.

Talvez por isso as frases feitas. A pseudo grandiloqüência. Outro dia eu disse "Saudades, atrasadas e adiantadas", pra uma pessoa muito mais que querida, que eu não via há tempos e que ficaria indefinidamente sem ver. E estava sendo sincera. Mas vejo agora que fiz um recorte da realidade ali, assim como fiz aqui. Falando com um grande amor, são palavras tão vazias. Tão pequenas. E o verbo "ver" é uma parcela tão ínfima do que eu sinto.

E hoje eu sinto todo dia a mesma coisa, como há muito não me acontecia.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

poeminhas das 7

Leva essa lembrança tua
Essa memória nua
Esse dia de sol

Pega a minha felicidade
E toda a minha saudade
Do que passou lá

Quebra o meu coração
Que arrancou do peito
Sem piedade ou dó

Rasga logo a minha roupa
Que eu já estou louca
Que já não caibo em mim

Leva toda a minha justiça
Pois mesmo sofrendo
Sei que hoje sou ré

Que você deu no pé
E me deixou aqui
Pra proteger a si

Mas o que eu posso fazer...
Se tudo que eu sei fazer...
É te amar sempre em fá.

você é...

Ouvi algumas vezes que você é o que você lê. Não sei de onde tiraram isso. Já li alguns Gabriel Garcia Márquez, e ainda não sei usar a meu favor a constatação de que realidade e fantasia se misturam, fazendo com que nenhum seja absoluto. Ainda não sei diferenciar sentimentalismo de emoção. Ainda não aprendi a observar Macondo, as pessoas, suas relações, sem ser um narrador onipresente que julga ser possível descrever intenções, pensamentos, interesses, caráter.

Já li muito Fernando Pessoa. E não consigo ser ninguém além de mim. Continuo tentando fazer tudo caber dentro de um único frasquinho escrito EU. E lá não cabem as diferenças, incongruências, incoerências. Tenho sempre que jogar alguma coisa fora, algum pedaço de mim. E costuma ser o pedaço mais triste. Mais desajeitado. Aquele com o qual se aprende.

Li mitologia grega. E ainda me deixo abater pela tragédia, pela família, pelos erros que não são meus. De Shakespeare admiro, mas não incorporei, a demonstração de que não há verdade. Não há mentira. E que fazemos sempre uso de máscaras e disfarces, e podemos ter consciência disso.

Estou lendo Nietzsche. E não sei se consigo me despir, um pouco que seja, da moral. Do bem e do mal, da verdade e da certeza, da “sedução das palavras”.

Mesmo de um dos últimos livros que li, e que mais gostei, não conseguir transpôr para a prática o fato de que não há "fatos", e mesmo memórias não passam de invencionices. Lindas ficções, desde que não sejamos escravos dela.

Então, sejamos livros. Desde que sejamos livres.

domingo, 20 de julho de 2008

Caetano Veloso - Nosso Estranho Amor

Não quero sugar todo seu leite
Nem quero você enfeite do meu ser
Apenas te peço que respeite
O meu louco querer
Não importa com quem você se deite
Que você se deleite seja com quem for
Apenas te peço que aceite
O meu estranho amor

Ah! Mainha deixa o ciúme chegar
Deixa o ciúme passar e sigamos juntos
Ah! Neguinha deixa eu gostar de você
Prá lá do meu coração não me diga
Nunca não

Teu corpo combina com meu jeito
Nós dois fomos feitos muito pra nós dois
Não valem dramáticos efeitos
Mas o que está depois

Não vamos fuçar nossos defeitos
Cravar sobre o peito as unhas do rancor
Lutemos mas só pelo direito
Ao nosso estranho amor

terça-feira, 8 de julho de 2008

do que se aprende com a suposta crueldade

Brincava com os meus sentimentos como uma criança inocente. De uma curiosidade cruel. Contava suas histórias, seus flertes e conquistas, fingindo não saber o quanto me magoavam. Eu que nunca soube se me machucava o descaso dela para com a minha dor ou minha incapacidade de amá-la sem tentar compreendê-la. Eu que não tento mais, e nem sei se ainda amo, nessa distância tão grande de mim.

E na digressão me escapou a criança travessa, vê-se que até nos meus próprios pensamentos não tenho controle nenhum sobre ela. Saiu correndo com meu coração numa mão, minha felicidade na outra, um sorriso estampado no rosto. Agora, revendo a cena aqui de cima, longe de tudo, é que eu vejo como as minhas lágrimas eram em vão. Inúteis por não terem razão de ser. A menina me esperava logo ali, abafando a respiração ofegante e as risadas. Se escondendo de mim num jogo de pique que eu não sabia que estava acontecendo. Esquecera de me avisar. Ou me faltava o senso de humor romântico, assim como sempre me faltou a noção de tempo que só ela teimava em achar encantadora. Com a visão embotada de dor fica mais difícil ver o óbvio.

O que sinto agora, fechando os olhos, é a presença dela me esquentando a pele e a alma. Provavelmente porque nela faltava uma certa resignação com aquilo que havia sido estabelecido como ela e como o outro. Brincava com esses limites que ela não via, e nem ninguém mais. Expandia o que era ela e o que era eu, até restar pouca diferença. Quase nenhuma. E o prazer que era, e a paz que era, saber que um sopro dela me fazia transcender. Mas com a visão embotada de mundo, fica mais difícil ver a inocência.

E ela foi seguindo achando grande graça no efeito que uma ação sem significado dela tinha em mim, querendo que eu risse junto de seus experimentos. Que eu conseguisse separar o real do encenado, e que compartilhássemos um amor maior. Grande o bastante para caber o meu crescimento e o dela.

Não coube. O meu crescimento não coube em mim. Tudo o que eu questionava e aprendia de mim para tentar viver aquele amor foi se tornando maior que a pele, maior que o corpo. E ganhou o corpo. Perdi eu. Crescer rápido demais dói na carne e nos ossos, e não suportei a dor.

Mas é a única dor que pertence a mim, e a mais ninguém. Verdadeiramente minha, que nasceu de quem eu era pra me transformar no que eu sou.

Não agradeço, portanto, pelo sofrimento. Não peço desculpas, tampouco, por não ter suportado. Não espero mais pelo reencontro, pois um anjo ou demônio pode passar e realizar um desejo que ainda não chegou a ser destino.

Me resta, assim, eu e minha própria liberdade. Sabendo o quão inevitavelmente cruel pode ser adquirir e manter sua liberdade. E isso eu aprendi com ela.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Falling Slowly - Glen Hansard

da trilha sonora de ONCE

I don't know you
But I want you
All the more for that
Words fall through me
And always fool me
And I can't react
And games that never amount
To more than they're meant
Will play themselves out

Take this sinking boat and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice you have a choice
You've made it now

Falling slowly, eyes that know me
And I can't go back
Moods that take me and erase me
And I'm painted black
You have suffered enough
And warred with yourself
It's time that you won

Take this sinking boat and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice you had a choice
You've made it now

Take this sinking boat and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice you had a choice
You've made it now
Falling slowly sing your melody
I'll sing along

sobre a moça de olhos vermelhos

*******

Saiu andando com a mão no bolso do blazer, finalmente desistindo de parecer adulta. Chegou na lanchonete com lágrimas nos olhos, finalmente não tentando se manter feliz.

Recebeu o troco acompanhado de alguma palavra de carinho, e só então percebeu que já estava chorando. Mais tarde, pensaria em “sempre dependi da bondade de estranhos”, uma frase que lhe marcara a alma. Mesmo sendo ela própria uma aspirante à auto-suficiência.

Continuou seu trajeto assumindo que não sabia para onde ia.
Reconheceu até a possibilidade de não conseguir chegar.

E então parou, no meio da praça.
E até sorriu, um pouco sem-graça, de graça, desgraça.
Tentando se acostumar a ser ela mesma naquele lugar.

Foi aqui que resolveu não mais fingir ser sozinha.
Ou foi obrigada, poderia dizer, quando viu que ao invés de tentar esconder sua dor, havia se colocado embaixo do maior foco de luz que poderia encontrar.

Sentiu a força do desejo legítimo de deixar sua dor ser também a daqueles que passavam, sem nem perceber que isso seria, de certa forma, um ato de generosidade.

(Manteve-se assim por período indeterminado.
Sentindo a liberdade de ter estabelecido seu próprio palco e de, finalmente, não atuar.)

*******

segunda-feira, 31 de março de 2008

quatro nove sete

- Ô, rapaz, liga aí pra esse número e chama a Marcinha.
- E falo que é o Roberto?
- Fala não, fala nada. Só chama a Marcinha.
- Mas e se perguntar quem é?
- Aí você fala que é o Estevão! A mãe dela me odeia, se souber que sou eu não vai querer passar e ainda te xinga.
- Ah, eu não vou falar com ela não...
- Larga mão de ser frouxo, Estevão! Tu nem conhece a velha!
- Ué, por isso mesmo! E se ela perguntar Estevão da onde?
- Aí tu fala que ela é uma mal-educada, que não se pergunta essas coisas. Ta achando que é empresa? Liga aí, pergunta se a Marcinha conseguiu o telefone do Rogério.

- Alô, posso falar com a Marcinha? Oi, Marcinha. Aqui é o Estevão, eu trabalho com o Roberto e ele pediu pra eu te ligar pra... Não, ele não ta podendo falar, não... Tá no volante aqui.... Entendi... Entendi... Falo, sim. Valeu, então. Tchau.

- E aí?
- Disse que ainda não conseguiu.
- Que merda...
- Mas quem é essa mesmo?
- Porra, cara, a gente namorava, mas aí eu arranjei minha mulher e ela descobriu. Aí arranjou outro pra me deixar puto. E eu fiquei puto pra caralho.
- E aí você ligou pra ela?
- Tu tá maluco? Ela que ligou pianinho, falando que queria voltar.
Que queria exclusividade. Aí eu falei: “exclusividade só pra minha filha”. Num vou nunca trocar minha filha por rabo de saia... Sorrisinho lindo, tá dando dente agora, tem que ver.
- E aí cê perdeu a Marcinha?
- Perdi nada. Falei pra ela esperar um ano. Que em um ano eu separo da minha mulher.
- Vai esperar terminar de nascer os dentes?
- Mermão, tô pagando prestação de geladeira, fogão e rack. 200 pau por mês no carnê. Vê se eu vou pagar tudo! E ainda bancar pensão! Vê se eu tenho cara de idiota!
- E aí cês não se pegam nunca.
- A gente se pega direto.
- Como assim? Ela não falou que queria exclusividade?
- É, ué. Mas não dá pra ter tudo na vida.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

quando desce o pano

Tudo o que eu queria hoje era chorar com um estranho.

Sem ter que contar os motivos que eu nem sei quais são. Ou repetir as mentiras que eu nem sei quem contou. Ou as mesmas histórias de fatos seguidos um do outro.

Tudo o que eu queria hoje era esquecer do meu passado inventado, e quem sabe ser eu por um dia. Sem ter a obrigação de ser feliz.

Queria hoje não ter a esperança de me encontrar em algo ou alguém. Ou mesmo em mim.

E não ter que me esconder ou me confessar. Queria pular esse sempre falso getting to know you e cantar Caetano na calçada.

Hoje eu queria não ter nem ser objeto de desejo e provar beijos salgados de algo verdadeiro. E abraços que não querem nada além daquilo.

Isso tudo porque um estranho me olhou e sorriu e sabia alguma coisa. E eu que nem sei que segredo ele tirou de mim numa fotografia, pensei que queria aquela parte de mim de volta.

E eu que nem sei o quanto se pode atuar um olhar magnético, pensei que queria saber se aquele era de fato pra mim.

Mas eu queria a liberdade de não precisar contar nada. E que o beijo roubado não fosse só meu.

Tudo o que eu queria hoje, enfim, era me encontrar com um estranho que quisesse de mim exatamente o que eu quero dele.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

just a thought

"saudade dessas memórias inventadas daquilo que poderia ter sido."

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

E que dia lindo é aquele em que se descobre...

Clube da Esquina.

Um girassol da cor do seu cabelo
Lô e Márcio Borges


Vento solar, estrelas do mar
A terra azul da cor do seu vestido
Vento solar, estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo

Se eu cantar não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar
Bom dia
Como vai você? (2x)

Sol, girassol, vejo o vento solar
Você ainda quer morar comigo
Vento solar estrelas do mar
Um girassol da cor de seu cabelo

Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que ainda é tarde demais?

Se eu cantar não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar
Bom dia
Como vai você?
Você vem?
Será que é tarde demais?

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

post scriptum

Você olha e ela tá ali dançando pra ela ou pra todo mundo ou pra alguém que não é você. Mas, cara, você tem que saber que é porque ela não sabe, entende? Ela não sabe olhar nos olhos e dançar pra quem ela quer dançar, porque ela vai tá se entregando. Porque ela leu em algum lugar que os olhos de alguém são sempre de um gnomo louco e desesperado que fica encolhido ali dentro, e ela não conhece o gnomo dela, cara. E ela morre de medo.

Rapaz, como tem medo essa daí. E é medo tanto que pra sair só de armadura, máscara, fantasia. Só você acha que não. Você olha e ela tá ali dançando e você achando nossa, que mulher madura e bem-resolvida, e adorando que tá na palma da mão dela. E ela põe mesmo a maior banca, entra na onda, versa sobre os mais variados assuntos, não bebe além da conta e essas coisas de quem acha que tem controle. Olha, que tem muitas assim e são umas filhas-da-puta, não tem como não ver. Mas essa... Dá pra ficar na dúvida, porque ela não parece querer ter ninguém na mão dela, não. Repara só. Ela pode até falar que sente o peso de um piano atrapalhando a liberdade dela, daquilo que ela leu de que tu te tornas responsável por aquilo que cativas. Mas ela deve tá é com medo do contato com a pele de quem é capaz de se envolver tanto assim. Vai que é contagioso.

Você olha e ela meio que te olha, você sente que ela te vê, que ela te despe inteiro ali numa conversa rápida numa cerveja no meio da rua. Mas ela não se deixou olhar em nenhum momento, cara, e isso é meio foda porque quase ninguém percebe. E as pessoas vão se apaixonando, e ela sempre se perguntando por quem diabos é essa paixão se ninguém conseguiu olhar pra ela e ver através de tantas camadas de um lance meio commedia dell’arte, saca? Ah, nem precisa sacar, ela fica com essa aura de difícil, metade dos caras se assusta e os que não se assustam são os que valem a pena, e aí ela foge. Mas se quem quebra a cara ou o coração é você, fica tranqüilo, que quem se fode é ela.

A parada, na verdade, é você decidir se vai ou fica. Porque decidir não é o forte dela, e ela vai te falar que tá em algum lugar entre fast as you can (e, cara, quem se identifica com Fiona Apple nunca é lá digno de muita confiança), entre isso e uma menina que precisa aprender a ser abraçada.

Mas, rapaz, quando ela fala isso você se derrete, né? E acredita, claro, porque dá pra ver que é verdade. Ou que ela acha que é verdade. Conselho pra te dar ninguém tem, provavelmente porque ninguém entende muito ela e nem vai querer botar a mão no fogo. Então você tá sozinho nessa, e decide pular fora. Mas é claro que querendo que ela de alguma forma te impeça, te peça pra ficar, te dê alguma garantia. E aí já é pedir demais, você tem que concordar. Não pela situação que ela tá ou algo assim, não é pra justificar a moça, não. É só que, porra, somos todos maiores de idade e vacinados, não é esse o lance? Então por enquanto, sei lá, cada um por si. O máximo que dá pra pedir é sinceridade, e nossa, pros tempos que a gente vive isso já é tanta coisa...

E aí, com essa quantidade de merda que eu falei (quanta viadagem, hein, cara?), a gente vê o que que dá pra tirar de bom. Caralho, por que a gente não gravou isso pra ouvir de novo amanhã? Transcrevia, virava um conto. Né, não, Neves? Traz mais dois! Porque amanhã eu vou negar que falei isso tudo, você sabe, e te falar pra calar a boca e aproveitar que ela é gostosa. Mas, meu caro, hoje eu te confesso que tá todo mundo aqui sozinho, e com medo, só querendo se deixar abraçar, e a máscara cair.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

já na lista

Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar. Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas. Mas, no mais das horas, ele estava cansado. Cansado e como que assustado. Sufocado. Ele não era ele mesmo. Diante dele, as pessoas, as coisas, perdiam o peso de ser.

Manuelzão e Miguilim, João Guimarães Rosa

Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas me sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só essa vontade quase simples de estender o braço pra tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nessa janela, já dissemos tudo o que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação, impressão, ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e com a ponta dos meus dedos tocar você, natural que seja assim: O toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.

Anotações sobre um amor urbano, Caio Fernando Abreu

para a lista

- Deve haver muitas diferenças entre nós.
- Diferenças? E então? Se não houvesse diferenças nós seríamos uma pessoa só.

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A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste.

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Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.

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Mais tarde, no escritório, uma idéia indeterminada saltou-me na cabeça, esteve por lá um instante quebrando louça e deu o fora. Quando tentei agarrá-la ia longe.

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O que estou é velho. Cinqüenta anos pelo São Pedro. Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

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Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.

São Bernardo, Graciliano Ramos

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

downtown

J. querida,

Você me pergunta como vai a vida, mas não conseguiria lhe escrever sobre isso. Só consigo pensar em como vai a Morte, como sinto Ela nem mais se esgueirando. Antes parecia que se escondia. Agora ando pelas ruas e A vejo estampada nos rostos medrosos, nos anúncios coloridos, e principalmente nas vitrines e em seus reflexos. A Morte tomou conta da cidade, tomou conta de todos nós. E hoje me tocou.

Andava pelo centro, bem perto daquela confeitaria da nossa adolescência. Por uns minutos, segundos talvez, nos vi ali. Eu, naquela paixão suada e silenciosa. Você, num daqueles seus amores que duravam uma matiné e um sorvete. E que terminavam sempre em nós dois, enquanto você me dizia que nenhum deles adivinhava que você era já uma moça madura e preferia milk shake. E querida, por favor, não tente me convencer novamente de que você estava esperando por mim. Nada me doeria mais do que ter te perdido sem nem mesmo saber, então prefiro pensar que você disse isso com aquele seu sorriso ambíguo de quem está medindo reações, prestes a soltar uma gargalhada jogando a cabeça pra trás sabendo que tem o mundo aos seus pés.

Nenhuma gargalhada por aqui. Andava, perdido nessas memórias que mais pareciam invenções, quando uma mulher me pegou pela mão. Me olhou com uns olhos secos de não ter mais nada. E não disse palavra. Estava num desespero oco que foi entrando pela minha pele, sem me deixar saber se era um quente, um frio ou um choque elétrico. Você bem sabe as lágrimas que eu tenho acumuladas em mim, e tudo o que quis naquele momento foi dá-las para ela. Mas antes que pudesse, ela se foi. Me soltou. Talvez decepcionada por eu não ter esboçado nenhuma reação, qualquer que fosse. Ou talvez ela só quisesse algum calor, e eu deveria realmente ser o único por ali sem luvas. Sei que ela se foi. E eu não tentei impedir. Não tentei salvá-la.

Minha querida, tenho certeza de que essa mulher morreu. Estou sentindo isso em mim, essa proximidade com a Morte. Tenho medo d’Ela ter conseguido penetrar pelos meus poros. Porque na cidade agora é assim. A Morte é contagiosa e certeira, e eu vejo os moribundos andando pelas ruas vestidos de preto. Todos se dirigindo aos próprios enterros.

Mas não vou me preocupar. Sei que um abraço seu irá me curar, como já curou tantas vezes. E aí, a vida e as cores. Sim, estou fazendo o possível para ir visitá-la. No Natal, se tudo der certo. Me pergunto se as crianças ainda se lembram desse tio postiço distante, cuja tosse o impedia de brincar nos jardins. E sei que quando eu chegar você estará vestida de flores, e com cheiro de flores.

J., não deixe que nosso amor seja nada além disso: flores e milk shake.

Seu, para sempre,
E.