terça-feira, 18 de dezembro de 2007

da cotovia e do catavento

Um dia, a menina acordou e sua cotovia na gaiola não cantava. Não se levantava. E nem se mexia. Foi perguntar para a mãe, e esta foi tão clara quanto doce:
- Minha filha, a cotovia foi pro céu.

E ela, é claro, não entendeu como é que a cotovia foi pro céu estando deitada, logo ali. E porque é que não preferiu ir para o céu voando, cotovia que era. E pensou que ela não estaria quietinha não cotovia se não fosse a gaiola dela menina, que não deixou a cotovia ir inteira inteira pra bem longe, tendo que deixar o corpo pra trás.

E aí que chega o pai, e como que lê o pensamento e diz assim minha filha, cotovia não é bicho de ficar em gaiola. É bicho de voar solto, cantar solto, comer solto e morrer solto pra solto viver. Como todo bicho que vale a pena. Tendo grade ao redor ou não.

E foi dizendo tirando a bota do pé, abrindo a camisa no peito, lavando o rosto do pó, abraçando a mãe num cheiro sujo gostoso por trás e finalmente a olhando no olho.

E a menina viu, naquele olhar de olho igual ao que a menina via quando olhava no espelho, que a cotovia era como o pai. Bicho solto que tá aqui passando, e vivendo vida vivida e cantada e voada, mas que é maior que qualquer gaiola, seja ela feita de mundo ou de carne e osso.

E viu ali naquele olhar que um dia o pai também ia criar umas asas de fazer bicho solto voar tão alto quanto queria.

E a menina viu, ali naquele olhar maior que o olho, a felicidade da certeza de que final era começo e que começo era aventura e que aventura era viver e que viver era mais do que aquelas rugas de tempo e que tempo não existia, era só a menina lembrar o que sentia quando andava a cavalo ou corria com os cachorros ou rodava rodava a saia ou nadava no rio e olhava embaixo d'água.

E a menina viu que o pai viu que ela viu e pouco tempo de gente durou aquela cumplicidade de um tocar de almas, mas o bastante pra de água encher os olhos e os dois saberem que não haveria lição maior que aquela.

A menina então levou a cotovia, ou o corpo que nunca da menina fora, e enterrou coberta de terra. E sentiu o pesar de uma dor de perda, e chorou lágrimas de lavar menina, pai, mãe e cotovia. E rezou uma reza qualquer antes de olhar pra cima e saber ali que havia descoberto ser livre. E que ficaria sempre o canto da cotovia e o giro do catavento.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Rio

Querida,

Estou escrevendo porque bateu agora uma saudade, tremenda, de você. Nunca tinha pensado nisso, mas será que tremenda tem alguma ligação etimológica com tremer? Não sei. Sei que está frio, e não chega a ser tanto, mas essa chuva me faz querer ainda mais estar te abraçando naquela cama pequena que nos incomoda nos dias de calor. Saudade do seu mau-humor monossilábico de quem quer esconder os pensamentos para ter os pensamentos desvendados. Ou de quem simplesmente queria ter dormido um pouco mais.

Saudade do seu bom-humor frouxo, seu sorriso por trás do cigarro, os copos que você quebra quando vai esbarrando no mundo, inadvertidamente no seu caminho quando se lembra de que pode ser leve, e essa leveza que tira seu pé do chão e pode te dar um medo de ser levada embora. E do gosto do seu beijo nessas horas em que você me deixa voar junto ao invés de cortar as próprias asas. Acho que nunca te contei isso, mas no dia daquele primeiro beijo, antes daquele primeiro beijo, eu olhei pra você e você tinha asas e elas estavam fechadas e eu achei um desperdício tão grande que você não estivesse voando, talvez sem nem saber que podia. E quis te beijar ainda mais, e no beijo foi que eu te entendi um pouco pela primeira vez. Porque com você assim perto deu pra sentir o peso que é carregar umas asas fechadas o tempo todo. Saudade de te entender um pouco mais a cada beijo. E da maneira como tudo o que você fala contradiz a sua boca, e como eu aprendi a acreditar mais nela.

Saudade do seu peso em mim. E do medo que eu tinha de que você sentisse o quanto o meu coração batia forte, e de como assim ele batia ainda mais, e do pacto tácito que a gente fez de se ensinar a não ter mais medo. E de como não ter medo com você me fez ter menos medo do mundo. Mas principalmente do mundo que eu vejo quando estou do seu lado.

Querida, bateu agora uma saudade tremenda de mim. Volta logo. Que o violão não agüenta mais ser afinado todo dia.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

morango com cacau

Às vezes, eu preciso que você me lembre que eu sou doce. Como quando eu fiquei do seu lado. Só para estar lá. Só para não te deixar sozinho com a sua dor. Mesmo sem conseguir chegar perto e te abraçar. Mas aí vem você, e diz que não. Que eu fui doce quando consegui pedir para você ficar. Comigo. Para não me deixar sozinha. Com a minha dor. E me entreguei num abraço. Salgado.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

o meu pai

O meu pai me ensinou que é só gritar o nome da palavra como se ela tivesse lá do outro lado da rua. Quando for pra saber qual é a sílaba tônica. Ele me ensinou isso logo no início, então eu nunca entendi muito bem porque as outras crianças se confundiam tanto. Se era assim tão simples. Não lembro se eu tentei ensinar isso pra elas. Só lembro que era sempre a mesma rua, e era uma rua assim escura. Rua de sonho. Ou de pesadelo. E só tinha na rua eu e a palavra, lá do outro lado. Eu gritava o nome dela, assim bem alto. E não sei por quê, mas quando eu ia ver a palavra era sempre uma galinha.

O meu pai encadernava os meus livros. E cada ano de uma cor. Eu acho. Sei que teve um ano com um plástico quadriculado, de azul e branco. Eu achava engraçado. Era coisa de mãe, né? Encadernar. Mas ele fazia tudo certinho. A gente sempre fazia de noite, e eu sempre nervosa porque as aulas iam começar. E na primeira aula de todas eu chorei, porque o meu pai tinha ido embora. O olho foi enchendo de lágrimas e eu não queria piscar. Só que aí não encontrava as sílabas. Acho que eu queria o meu pai. Ele é que tinha me levado.

O meu pai colocava formigas no meu café com leite. E me dava óleo de fígado de bacalhau. Só eu não reclamava pra tomar. Acho que a gente conversava tomando café. Ele lavava o meu cabelo de manhã. E um dia a minha mãe reclamou, porque eu era grande demais pra não lavar o cabelo sozinha. Aí eu lavei, enquanto eles discutiam. Acho que os dois ficaram orgulhosos.

O meu pai dormia ouvindo rádio. E pegava mosca com a mão. E um dia cantou pra mim a música que a minha mãe cantava, porque ela tinha viajado. E eu estava chorando. Eu não lembro se eu chorava muito. Eu não lembro de muita coisa. Me falaram que ele era mal-humorado, mas eu não lembro disso também. Ele me ensinou a engraxar os meus sapatos. E a amarrar cadarços. Eu lembro que só a gente acordava cedo nos fins-de-semana. E assistia ao Globo Rural. Mas eu não lembro se eu só fingia que gostava.

O meu pai um dia foi embora. Me falaram que ele tinha que trabalhar em outro lugar, mas eu não entendia muito bem o porquê. Só sabia que ele tava indo e eu não queria soltar. Não sei se só me contaram no dia, mas tinha uma mala e eu tava chorando e não queria soltar. Sempre que dava ele voltava. Me ajudava com o dever de matemática. E eu queria conversar. Mas o tempo foi passando e a gente não se conhecia mais. Até que um dia eu soltei.

Eu nem sei se ele ainda dorme ouvindo rádio. Mas às vezes é o colo que eu queria.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

adeus

Meu bem,

Eu vou embora. Gostaria de te contar que foi passageiro. Minha felicidade sem motivo, meus sorrisos fugidios. Gostaria de, agora, te contar que já acabou. Te dizer que foi um deslize. Te pedir perdão.

Gostaria, mas se acabou foi contra a minha vontade. Eu queria ele. Eu amava ele como nunca te amei. Amava com ele como nunca com você. Desejei ter conhecido ele antes, e que meus filhos fossem dele. Minha pele. Minha aliança. Mesmo tendo sido só um sonho. Numa cama desconhecida. Num abraço longo. Num beijo nosso. Mesmo assim. Foi um sonho que ecoou. Como se, em alguma outra dimensão, essa vida estivesse existindo. E agora eu olha para essa casa, e não é minha. Não a sinto minha. Não me sinto aqui. Não reconheço esses quase vinte e cinco anos, essas fotos, esses pratos na parede, essa cor que eu nunca quis. E quero voltar pra onde pertenço.

Eu vou embora. Vou te deixar. Os meninos já estão crescidos. Você também deveria estar. Deveria ser homem o bastante pra me perguntar com quem me encontro, quem é que liga. Me dar um tapa, me mandar pra fora. Mas não. Você finge que dorme, que não escuta, que não se importa. E no dia seguinte me compra flores. Não quero flores. Ele nunca me deu flores, nunca precisou.

Ele me pediu pra ir embora. Com ele. Te deixar. E ele deixaria ela. E a vida começaria. Eu tentei. Tentei te dizer, meu bem, vou embora. Mas era só eu pensar, começar, abrir a boca. Pra você mudar de assunto, com palavras doces, com declarações de amor. Você covarde, eu mais. Talvez um casal que se mereça.

Eu não vou embora. Eu fico. Sem felicidade sem motivo. Sem sorrisos. Eu até tento, mas aí vejo a sua satisfação de me ter aqui. Ainda que triste. Ainda que despedaçada. Ainda que te odiando mais a cada dia.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

enfim

Depois de alguma brincadeira, talvez, porque você adorava fazê-la rir. E ela disse assim, como quem não quer nada, e você teimando em não ver que ela não queria mesmo muita coisa além daquilo ali naquele momento, naquela cama ou em outra. E você até diria que pra você também bastava, mas só pra se enganar mais um pouco, já que só bastava na ilusão de que um sentimento dela se aconchegasse no seu.

E ela disse, assim desse jeito, que você nunca falava sério. Disse por dizer, que era como ela dizia quase tudo. E será que ela percebeu que seu sorriso fechou? Que você de repente parou no ar, tentando não pensar na queda que se aproximava? Porque só tinha uma resposta, um motivo, uma explicação pra muita coisa nessa história. Mas você se protegia ao não falar. Muita coisa acontecia, muita coisa machucava. Mas não ter falado te mantinha leve, talvez livre, quem sabe em pé.

E agora isso. E agora não existiam outras palavras além daquelas eu te amo.
E nunca tão tristes. Nunca tão sujas. Você não falava, não pensava, porque sabia que sairiam assim, já derretidas, já vermelhas, já lava se espalhando e devastando o pouco que tinha. E sairiam quase como uma desculpa. Com reticências que pareceriam dizer “eu não pude evitar... não com o seu cheiro, o seu riso, as suas loucuras de fim de tarde”.

Agora ela ali. Provavelmente não maldizendo tanto a pergunta feita quanto você a resposta não dada, e o coração em algum rebuliço enquanto você se esforçava para pensar em outra coisa, qualquer coisa, mas só vinha um sentimento maior que o peito, maior que o seio, maior que a boca, maior que a nuca, e você sem saber porque sempre achou que esse amor tinha nascido de um beijo na nuca, e como queria rir com ela de que seriam poucas as pessoas que poderiam dizer “meu bem, olha como nosso amor começou”.

Agora ela ali. Mas não era insensível, e também se iludira, tentando se convencer de que era recíproca aquela simplicidade, aquele desapego. E tentando não pensar que poderia ter sido algo mais se ela... Enfim.

De todos os verbos que vocês usavam, nenhum era presente. Ou será que todos eram isso e nada mais? E quem levantou pra ir embora? Quem chorou sozinha a dor de um amor que quer chorar a dor com esse amor que ainda não acabou? Quem abraçou quem, afinal, no final? Quem conseguiu fechar a porta se ainda vem aquele vento gelado que te faz querer dormir com ela?

E eu, é claro, tentando não pensar que poderia ter sido algo mais se você... Enfim.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

lindo lindo

“Eis o mistério que me deixava desconcertado naquela época, e continua deixando. Como é que ela podia estar comigo num momento e no outro, não? Como podia estar em qualquer outro lugar, de forma tão absoluta? Era isso que eu não conseguia entender; era isso que eu não conseguia aceitar, e continuo não conseguindo. Uma vez afastada da minha presença, ela deveria ter se tornado imediatamente pura ficção, uma recordação minha, um sonho meu; mas todas as evidências me diziam que, mesmo de longe, ela permanecia ela mesma, de um jeito sólido, obstinado, incompreensível. E, no entanto, as pessoas vão embora, desaparecem. Esse era o maior mistério, o maior de todos.”

O Mar, John Banville

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Sorte de hoje: Se seus desejos não forem extravagantes, eles serão realizados.





Bem... Defina extravagante.

domingo, 7 de outubro de 2007

uma menina

Era uma vez uma menina...
Que não, não queria ser bailarina. Quem dera fosse assim tão simples. Quem dera soubesse. Quem dera lembrasse.

Era uma vez uma menina que não conseguia se aproximar. Dos outros, do mundo. Ela meio que flutuava ao redor, pairava, observando. E não era um observar como que julgando, nem como se pudesse. Pena não fazia parte de seu repertório. Nem dó. Nem piedade. A palavra que ela descobriu em si foi compaixão quando soube que paixão significa sofrimento. E era isso: sentia a dor dos outros, como os outros, com os outros. E que outros lindos eram aqueles que se deixavam sentir, se deixavam levar, se deixavam sofrer no caminho de viver uma vida vivida. Sentia, então, um certo amor, que vinha com uma vontade de num abraço dizer tudo que...

Era uma vez uma menina que queria se aproximar. Dos outros, do mundo. Mas não sabia como dar o que ela nem sabia o que era, o que ela nem sabia o que tinha. E sentia tanto o que os outros sentiam que nem sabia mais o que era dela. A menina queria se dar. Como certas pessoas, umas que ela admirava mais – era menina de se admirar essa menina. Mas, não sabendo como, dava o que podia. Esperava um anoitecer – de algo que escondesse um pouco a timidez de quem não costuma, enfim – saía correndo e deixava um presente desajeitado pra alguém que talvez nem soubesse o por quê. E podiam até achar que a menina dava algo de si. Quem sabe. Mas, se reparassem bem, ela quase nunca abraçava.

Era uma vez uma menina que tentando se aproximar, dos outros, do mundo, convenceu. E convencer é tão triste pra uma menina que só quer ser descoberta.

Era uma vez, enfim, uma menina. Que era tantas meninas juntas. Que podia até caber em si. Mas se perdia no caminho.

sábado, 29 de setembro de 2007

sobre O Banheiro do Papa




A premissa é simples: homem decide construir um banheiro para ser alugado durante a visita do Papa à sua cidade. Em um cinema mais clássico, essa informação apareceria logo de cara, com 20 minutos de filme, no máximo. Mas em O Banheiro do Papa (de César Charlone e Enrique Fernandéz), lá se foi meia-hora até que o protagonista tenha essa idéia. Nesse tempo, Beto e sua família foram apresentados.

Ele é um pequeno contrabandista, que vive das viagens que faz de bicicleta atravessando a fronteira entre Brasil e Uruguai. Sua mulher está sempre segurando a onda do marido, suas brigas, suas idéias, sua falta de dinheiro. A filha quer mais da vida, quer sair da cidadezinha e ser repórter em Montevidéu.

Mais do que trama e personagens, no entanto, a primeira meia-hora de filme nos propõe um certo ritmo, mais lento, calcado em pequenos acontecimentos que acabam sendo grandes para aquelas pessoas comuns. Nos introduz à maneira como essas pessoas serão tratadas, ao olhar que está sendo lançado sobre elas. E é um olhar generoso, que respeita o tempo delas, a rotina da cidade. Que não esconde os erros do protagonista, mas se concentra em seus acertos. É um olhar que se incorpora ao objeto, tornando-se parte dele, não lançando nenhum tipo de julgamento.

À medida em que a chegada do Papa se aproxima, fareja-se a iminência da tragédia, com Beto ultrapassando seguidamente a própria medida, fazendo de tudo por um sonho que mostra-se cada vez mais distante. Percebe-se, nesse momento, a importância estética e narrativa da fronteira Brasil-Uruguai, uma constante para o personagem e para o filme, que ganha um quê de road movie. Porque, pelo contraste com a estrada, fica claro o porto seguro que sua casa e sua família representam.

Assim, uma trajetória que tinha tudo para ser melodramática, e foi se delineando em direção ao trágico, tornou-se épica. Apesar de terem sido traídos pelo destino, os personagens não se deixam abater. E Beto, que caminhou à beira do abismo, chegando a fazer um metafórico pacto com o diabo, é resgatado, nos deixando sem saber quem é o herói. Se é ele, a mulher, a filha, a cidade ou, quem sabe, todo esse nosso continente ao sul.

replay aqui

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

o beijo da prefeitura

- Mas todo mundo sabe que aquela foto do Doisneau foi encenada.
- ...
- ...
- Não foi, não.
- Foi, sim.
- É claro que não foi. Como se alguém fosse capaz de reproduzir um momento daqueles...
- Ué, e o cinema faz o quê?
- Cinema é diferente.
- São várias fotos juntas...
- Ai, claro que não... Cinema você põe o movimento, as palavras, a música... É muito mais fácil. Fotografia é um plano. Só.
- Enfim, Marina, não importa. A foto é encenada.
- Cara, a gente tá falando da mesma foto? A foto nem é perfeitinha, os braços deles tão no meio do caminho, o cara parece o Bon Jovi, na época isso devia ser uó... Cara, Pedro, a velha que tá atrás fica chocada com o beijo! É lindo, é foda pra caralho!
- Eeei, não precisa gritar! Não tô falando que não é foda, tô falando que é fake. Todo mundo sabe disso.
- ...
- ...
- Por que você tá fazendo isso comigo?

O rapaz nem tentou ir atrás. Não ia dar corda pra uma bobagem daquelas, garota teimosa, grossa ainda por cima, mimada, ninguém pode contrariar, ainda devia tá de TPM e ele ia ter que ouvir mais aquela voz alta esganiçada de quando ela ficava nervosa e provavelmente só ele achava fofa no mundo todo.

Ele nem tentou ir atrás, e ela só queria que ele fosse atrás, que ele conseguisse provar que não, que não era invenção, encenação, pose, reprodução, mentira. Ela chegou a diminuir a velocidade, chegou a parar, chegou a virar.

Ela só queria que ele provasse que amor daqueles existia.

Devendra Banhart - A Ribbon

cores de Michel Gondry

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

p/b

Se pensassem nela, em uma imagem, em uma foto, seria em preto e branco. Certamente em preto e branco. Talvez o som chegasse antes, bem calmo, de mansinho, vindo num trem sem pressa lá de longe e de repente tão perto que ninguém se apercebeu que aquele mistério de fumaça da maria já se foi. Pra voltar daqui um cadinho, que é daquelas fumaças de névoa, de sereno, de verdade, que fazem parte de uma paisagem boa que às vezes pode até ser mais difícil de traçar mas por isso mesmo está sempre ali pra quem souber ver.

E na voz que vem cantada, ou nem cantada, ritmada, não se sabe se é de sotaque ou da calma que não é de paz de quem não precisa falar muito, quem sabe nada, pra que todo mundo veja, escute, sinta, leia que tem um mundo mundaréu desenhado pelas fumaças de um cigarro.

Mundo mundaréu que nem dá pra dizer se é grande enorme baleia voando no céu zeppelin que passa e vê as coisas, as dores, os amores de quem vai andando lá embaixo, aqui do lado, do lado de lá. Ou se é pequeno punho fechado coração lá dentro que bate enquanto vai andando e esbarrando e explodindo explosão de supernova estrela sapeca que se deixa levar barco de papel que existe somente na iminência de seu fim. Porque até o fim é bonito nas palavras de quem sabe escrever porque precisa, com o mundo escapando entre os dedos.

E não é mundo meu, mundo seu, mundo nosso, é mundo dela, tão dela, imagem na tela, tão bela, canção na janela, singela. Com a generosidade daqueles que se expõem ao dividir uma visão (de), um mundo, um coração partido, uma dor doída chorada secreta quem sabe, personagens que “às vezes” são mais biografia que ficção e é lindo que sejam e sempre será com quem se dá numa música, num poema, numa história, ou no cinema.

Se pensassem nela se emocionariam. Por saber que nossos tempos ainda permitem que se façam essas pessoas que chegam no limite, que andam na corda bamba, caem, se machucam, sangram, sorriem sorrisos de amores verdadeiros e que têm a coragem de fazer disso tudo coisas belas, ou tristes, ou sujas, ou confusas, ou isso tudo, enfim. Convencionou-se chamá-las de artistas. E, olhando pra ela, é o que se vê.





Mas gostaria que, nesse momento, ela pensasse em cores.

Holly Shit: Part III - Jim Dodge

The need for mystery is greater than the need for an answer.
– Ken Kesey

(...)

I believe every atom of creation
Is indelibly printed with divinity.
I believe in the warm peach
Rolled in the palm of my hand.
I believe God plays the saxophone
And the Holy Ghost loves to dance.

And I believe we are born to both fate and chance,
That we’re meant to chase ourselves
Through the labyrinths of desire,
Get lost, slaughtered, and discover
Extravagant pleasures lusciously prolonged.
And I believe that we can only attain such detachment
Through total, unstinting attachment to this world,
Here and now, all, every bit,
By getting your face in it
And throwing your self away.

I believe that faith is a reflex of gratitude
And that faith demands we go down singing
Rather than dwindle into constant snivel
Because existence won’t give us what we want.

I believe every voice in the choir,
Every breath-born note and syllable, the bell ringing,
Every quiver of sound.
And I believe most of all
My belief is not required.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Avant

E aquilo que eu te disse, você lembra?
De um abraço, de um sorriso, de um poema.
De um encontrar na esquina e não ser cena.
Não ter ensaio, nem roteiro, só cinema.

E aquilo que eu te dei, você guardou?
Ou deixou na estante e não usou?
Você que nunca entendeu que eu vejo em cor
E só a sua fumaça é black and white
Slow motion
Luz e sombra
Melodrama

Logo você, que cisma ser nouvelle vague
Nesses cortes descontínuos, jump cut
Sempre pára olha pra outro, por cima do muro, pula, vai, vem, volta, some e roda,
roda,
roda,
roda,
sem perder o equilíbrio, eu que caio, sempre caio, enquanto você pára. E olha pra câmera.

Logo eu, que só queria ser agora.
Só queria ser vanguarda de você.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Untitled Love Story

Foi andando pela rua assim andando se esforçando para se manter andando e em movimento e pra frente que pra frente é sempre um lugar melhor para se estar, ia pensando ela entre outras coisas que ia pensando enquanto ia andando sem perceber que já ia correndo.

E nem chegou a perceber, só percebeu que lhe faltava ar e foi a melhor sensação que tinha em horas, que tinha em dias, que tinha em meses. A sensação clara de que lhe faltava ar. Uma falta que ela conseguia sentir, explicar, pensar em sua solução, e saber onde exatamente no corpo aquilo estava.

Pela primeira vez em meses ela soube localizar uma sensação em seu corpo (naqueles pulmões pouco percebidos dos quais ela tinha agora não só orgulho como gratidão).

Porque se no início era uma língua na nuca, uma borboleta no estômago, um formigamento em partes que ela não sabia capazes de formigar, uma irradiação cada vez diferente, cada vez começando em um ponto e indo para outro cada vez diferente como diferente o lugar, a posição, o olho no olho, as palavras no ouvido, os cantos da casa, as receitas, os segredos, as conchas.

Se no início tudo isso... E era o que ela pensava do início, esse início ideal que ela nem lembrava que não era tão ideal assim, esse início de vida real. Não era ele que ela idealizava, nem ela. Era o início. E a foto, era o que achava ele. E ela não lembrava que desde o início houve aquela foto. Em preto e branco, é claro, por motivo de poesia.

E lá ela se viu. Se viu pelos olhos dele, e quem era ele mesmo? E com a foto ainda secando foi procurar o autor dela. Dela ela própria, que sentiu como se nascesse, ao menos uma parte de si, ao olhar aquele retrato que ela nem sabia que havia sido tirado. E o encontrou. Ele que, como pode-se deduzir de alguém que consegue ver algo na alma de outra pessoa, já a amava. E ela o amou, como teria amado de qualquer maneira ainda que demorando mais para perceber (o Chevete que ele dirigia não ajudava).

Mas ele nunca acreditou, desde o início, e aceitou a entrega dela achando – sabendo, diria ele – que ela amava a foto, que ela amava a si mesma na foto. E não ele. Mesmo ela sabendo que não. E sabendo que se a foto nunca mais fosse mencionada, ela só lembraria como aquele-objeto-maravilhoso-que-nos-uniu. E, meu-bem-poderia-ter-sido-uma-escova.

Claro está que a dúvida corroeu o pobre rapaz. (Caso não esteja, consideremos que a vida lhe dotou de uma capacidade de se considerar um personagem trágico e a vontade de agir como tal.) E a pobre moça de maneira ainda mais dolorosa, uma vez que a dúvida não era dela, ela só tinha certezas. E a partir daí, onde quer que tenha sido esse ponto em que eles não conseguiam mais ter momentos em que não pensavam em dúvidas ou certezas (palavras, afinal), ela parou de sentir em que lugar do corpo estava sentindo. Seria o corpo todo, ou o corpo nada, que corpo é esse que precisava daquela mão, daquela boca e onde estão, e onde está que está aqui do lado e tão longe e se não está aqui... Está na foto.

E agora ia andando sem perceber que ia correndo e com a foto na mão e só a foto mais nada nem chave nem celular, como se pra quê serviriam se sua vida perfeita estava se arruinando com aquela foto, naquela foto, e sem ele pra quê viver e sem viver para quê celular... E parou, recuperou o fôlego, sentiu os pulmões. E percebeu que passara a última meia hora formulando as frases mais ridiculamente dramáticas de sua curta existência. Melodramáticas, na verdade. E lembrou de todos os hábitos detestáveis que ambos cultivavam, desde o início, as piadas, a diferença notável no senso de humor de cada um, como ela odiava a mãe dele, desde o início. Nesse início que não era ideal, estava longe de ser. O sexo é que era melhor.

Parou então no meio da rua, adorando estar descabelada e ofegante e as pessoas olhando porque a leveza que lhe dava saber que não precisava se descabelar e ofegar (não nesse contexto, veja bem, que essas coisas podem ser maravilhosas) era de paz.

Rasgou a foto. Deixou em cima da mesa dele, picotada. Ao lado da porta, deixou suas malas e um casaco por cima: “meu-bem-você-me-trocou-por-uma-obsessão-e-agora-me-perdeu”. Ele chegou, a mala, a foto, e a amou como nunca, ou de uma forma um pouco diferente, naquele sentimento de quem não consegue falar o que realmente sente e o alívio, a satisfação, o prazer que é quando a outra pessoa advinha, e a amou como nunca sem nem pensar que gostava de falar “gostosa” e ela não reparou que nem pediu um tapinha na cara, e como ambos faziam isso desde que tinham descoberto o dirty talking com outras pessoas e como não haviam se deixado descobrir outras coisas e como dessa vez não foi uma fantasia que fez ele rasgar a calcinha dela, foi uma coisa que aconteceu como aconteceu ela ter adorado naquela adoração de quem quer quase chorar de tanta coisa transbordando e que por transbordamento consegue pagar o melhor boquete ever sem nenhuma baboseira freudiana de falo, poder e submissão, só duas pessoas que não querem negar que são uma da outra.










A mala, ao lado da porta, estava vazia.
E em alguma gaveta, escondida, uma cópia da foto.
Mas poderia ter sido uma escova.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

tapa na cara (inacabado)

“Um tapa na cara, bem dado. Tapa. Não soco, veja bem. Mão aberta. Tapa não machuca tanto, mas dói muito mais. Mais fundo. Estava convencida de que merecia um tapa na cara. Não. Queria. Chegava a querer. Torcia, sim, era essa a palavra.”

- O que você está fazendo?
- Escrevendo uma história, ora o quê.
- Hum... Sobre o quê?
- Sobre quem. Sobre uma menina que merecia um tapa na cara.
- E você pode fazer isso? Dizer isso assim, sem mal conhecê-la, que ela merecia um tapa na cara?
- Mas se ela mesma acha isso. Quem sou eu para contrariar?
- Ué. Ela pode estar errada. É muito fácil pra ela querer um tapa na cara.
- Isso lá é verdade. Tudo bem. Comecemos de novo, então.

Pois vejamos os fatos: de tantas coleções para escolher, tantos hobbies, tantos selos no mundo, tantas bonecas, sapatos, bolsas, cartões postais, coelhinhos. Tantos pingüins, meu deus! Ela colecionava corações partidos.

- Ai, que melodramático você. Só faltaram as reticências antes de “corações”.
- Mas... Mas não é revoltante isso? Colecionar corações partidos?!
- Não sei, quem está dizendo que ela fazia isso é você. Aliás, nem sei o que isso quer dizer.
- Quer dizer que com 21 anos, 21!, ela já tinha nada menos que quatro. Dos grandes. Dos bonitos. Quatro.
- Quatro?
- Ah, não, cinco... Teve aquele no primário. É, talvez até mais do que isso.
- Sim, tudo bem, mas eu não sei se isso é lá grandes coisas...
- Não é lá...?! Olha. Vamos lá. Eu explico com calma, até deixando de lado o caso de infância. Talvez crianças sejam mesmo inocentes, sabe-se lá. Então. Quatro pessoas que a amavam muito, que queriam fazê-la feliz, dividir uma vida com ela, construir algo. E ela os dilacerou!
- Com todo respeito, essa sua visão não está meio capenga, não? Nem sei se são tão do bem ou não. São seres humanos, isso já diz o bastante sobre o caráter de alguém.
- Divagação agora era o que faltava...
- Você entendeu. Quem me garante que eram tão inocentes assim?
- Talvez não fossem, tudo bem. Mas em três ocasiões, três, veja bem. Ela foi a namoradinha perfeita. Compreensiva e amorosa, sempre preocupada com o prazer alheio, em agradar, em resolver problemas...
- Uma chata!
- Claro que não! Uma manipuladora, isso sim! Deixou os três corações lá, achando que estava tudo bem, apaixonados...
- Acomodados, é o que digo. Estava na cara que tinha algo de errado, muito óbvio.
- Sabia! Novamente você simpatizando com o algoz...
- Algoz?! Vítima! Ou melhor, nem um nem outro. Estou dizendo exatamente que não tem nada disso.
- Como não?! Olha, uma coisa eu posso afirmar: aquelas pessoas ficaram devastadas. Perderam o chão.
- ...
- Pois duvide!
- Não duvido.
- Mas meu deus...
- Não duvido. Nisso eu acredito. Ficaram devastadas, é provável, mas porque é ela o monstro?
- Não falei em monstro. Falei em irresponsável, leviana, insensível e manipuladora.
- Pois veja o que eu acho: eu acho que ela está na merda.
- Olha os termos! Acha que é assim, vai se metendo e...
- Na merda, sim! E você acha ela uma escrota, é só falar. Es-cro-ta. Va-di-a.
- Pois acho mesmo ! E não só isso como burra. Bu-rra!
- Bur-ra.
- Que seja!! Uma estúpida! Tanta gente sem ninguém, sozinho no mundo, querendo só um amor, e ela acaba com quatro!
- É bom você me agradecer depois, porque eu estou te dando uma aula de compaixão aqui. E o lado dela, hein? Não estou dizendo que é santa, mas o que você acha que passa pela cabeça de uma pessoa pra fazer isso?
- Proponho o seguinte: agora vai você. E a gente vê.
- Eu topo.

(to be continued)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Sampa

Nunca achei que fosse gostar de São Paulo. Mas gosto, e cada vez mais.

O que me impressiona dessa vez é como é uma cidade que pode proporcionar muito mais auto-conhecimento do que o Rio. Não me proponho a socio ou psicologismos, é apenas a minha impressão. É claro que cada pessoa pode estar mais ou menos disposta a isso, mas acho que São Paulo é uma cidade que levanta muito mais questões, é só sabermos usá-los, e respondê-las com sinceridade.

Uma parte das questões diz respeito, é claro, a escolhas e gostos. Com a enormidade de opções da cosmopolita, que comida? De que país? Hamburgueria brasileira ou americana? Japonês grã-fino ou na Liberdade? Vila Madelana ou Itaim? Qual dos shoppings? Ou ao ar-livre? Qual das modas? Que boate? Ou boteco? Ou showzinho? Ou showzão? Enfim... O campo para experimentação é muito maior.

Mas isso, pra mim, é o de menos. Criada no Rio, aprecio a beleza das coisas, e me acostumei com as óbvias: o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Lagoa, Ipanema, o pôr-do-sol em qualquer lugar. No Rio, é comum o prazer em olhar pra fora e apreciar. É fácil, tá em qualquer esquina.

Em São Paulo, não. E é interessante andar pela cidade, que muitos acham feia, e prestar atenção no que você acha bonito. O que te chama a atenção, o que te faz ter vontade de parar pra olhar melhor. Quem sabe algo que dê a emoção que faz com que tenha gente batendo palma no Arpoador. E numa viagem, como alguém de fora, isso é só seu, só meu. Ninguém disse que é bonito, mas balançou. E isso diz algo.

Só que a verdade é que tem muita coisa feia. E, de qualquer maneira, há essa grandiosidade peculiar do horizonte sem mar, do leito de luzes. Aqui na Vila, essa outra vila daqui, tão diferente da nossa lá, do 13o andar dá pra ver um mundão de prédios. Mas também telhadinhos, de telha mesmo. E os carros, e as pessoas nos mais diferentes tamanhos. De onde estou, 180 graus de um mundão com vários mundinhos. E pôr-do-sol, mesmo com poluição, é de queimar a vista e combina com o vermelho das telhas.

E nem é poesia. É uma foto que ficou, assim como o clipe da vista com Jill Scott tocando em azul rodopiante.

Sem saber qual comida ou qual roupa, mas querendo buscar.

E a conclusão? São Paulo é bom pra olhar pra dentro. E apreciar. A cada esquina.

diario

Querido diário,

você que não sente, não erra, não peca, não sente tesão, não cai em tentação, não se apaixona, não machuca os outros, não se machuca nem é machucado, não tem fantasias nem perversões, não trepa e não goza, não reza e não chora, não pensa em atropelar e se jogar da janela... Querido diário... Por que diabos eu conversaria com você?

Querido diário, só porque você não julga e não abandona? Não emite opiniões e não reprova? Dá alívio e conforto? Querido diário, me desculpe, mas eu prefiro o desconfortável. Cansei da mão na cabeça e, com todo respeito, nem mão você tem.

Querido diário, espero que entenda. Mas acho melhor um tapa na cara de alguém que se importe o bastante para tanto. Escolho a reprovação sincera, e carinhosa. Escolho crescer.

Querido diário, não se ofenda. Veja bem, não será para mim que escreverei. Será para a pessoa que eu amo. E que me ama de volta. Uma pessoa para quem eu possa contar meus erros sabendo que serão deplorados. Uma pessoa que eu magoe e que me magoe porque, afinal, é também o que as pessoas fazem. Mas também uma pessoa pela qual eu queira mudar, crescer, reconhecer as falhas, lidar com elas.

Querido diário, aprendi que sinceridade não é confessionário, e que é melhor sofrer com consciência do que o alivio de uma penitência.

Então, querido diário, adeus. A partir de agora, escrevo para uma pessoa de carne e osso, um grande amor. Que como todo grande amor, e como muitas outras coisas, machuca. Mas como todo grande amor que é grande o bastante para ser muito mais que um grande amor, é o único capaz de fazer do machucado algo além.

E é para além que eu quero ir.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Lacunas.2

Acho que falei mais da coisa da declaração do amor...

Mas tem tantas outras coisas, talvez até mais importantes, no final das contas.

Deixar lacunas:

deixar que o outro ligue, que o outro chame, que o outro tome a iniciativa. Enfim, deixar que o outro perceba que quer e faça algo a partir daí.

deixar que o outro não ligue, não chame, não tome a iniciativa. Enfim, dar a liberdade para que em alguns momentos o outro não queira. - E isso isso significa, obviamente, não ficar mal com isso. E não ficar mal normalmente significa que você precisa SE dar essa liberdade também, pra entender o momento do outro depois.

Não fazer tudo pela outra pessoa e pelo relacionamento. Deixar que a pessoa faça algo também. E, novamente, isso vai diminuir as chances de cobrança. Se você faz tudo, acaba querendo o mesmo em troca.

Não idealizar. A pessoa, a relação. Essa é difícil... Mas se a gente cria uma imagem prévia na cabeça: pronto. Todas as lacunas foram preenchidas, e ai de quem não dançar no ritmo, não seguir o roteiro.

E não idealizar você, é claro. Não partir do princípio que você é uma determinada pessoa, que deve agir de determinado jeito, ter determinadas reações. Esse talvez seja o maior retrocesso que uma pessoa pode fazer. Privar-se do auto-conhecimento, de saber como vai reagir, do que gosta e do que não gosta, o que aguenta, o que topa, o que dói, onde dói, e porque dói. (Isso serve tanto pra quem diz que é decente e íntegro quanto pra quem jura que é descolado e adora uma libertinagem.)

E o diálogo. Não falar tudo. Não é tudo que precisa ser dito, discutido. E não é você quem precisa puxar todas as conversas, resolver todas as questões. Deixar que a outra pessoa fale um pouco também, ou queira não falar, ou queira não ouvir. Conversar mais com você antes de despejar as coisas do lado de fora. Não usar o outro como terapia, confessionário. Ou usar, mas sabendo o que isso significa e fazendo porque você quer, de fato, dividir aquilo.

Enfim. Consciência e liberdade. Estar atento ao que você quer e sente, pra onde você está indo, pra onde você quer ir, com quem.

Essas são, minha gente, as palavras de sabedoria dessa semana.
Ishalá, saravá, afoxé, Jeová, meu rei.

E Gondin e Lya Luft, é claro. Eles são uma INSPIRAÇAO, Fausto!

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Lacunas

Um autor que falou na FLIP, Jim Dodge, mencionou a importância das lacunas na sua literatura. Disse que a escrita é coletiva, sua com seu leitor. E que é necessário que haja confiança no leitor e que se deixe lacunas a serem preenchidas.

Acho que isso se aplica muito, completamente, a relacionamentos. Duas pessoas que se relacionam são uma leitora da outra, e ambas criadoras. De si, do outro, do que liga as duas, da vida que levam juntas. E é necessário que se respeite esse espaço criativo. Mais que isso. Não deve se subestimar a inteligência do outro, e partir do princípio que ele pode, sim, completar algumas lacunas. Que não é necessário que fique tudo claro, óbvio, estampado, em néon o tempo todo. Porque é possível que outro não queira mais criar, nem consiga mais fazer parte daquilo.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

um final. ou um início.

E foram, assim, cada para um lado. Com a certeza de que não era possível, de que era um relacionamento inviável, de que um faria o outro sofrer eternamente e que essa dor, a de machucar o outro, seria insuportável.

Tantas certezas. Tantos adjetivos. Um narrador onisciente, em terceira pessoa, diria o quão enganados eles estavam, cada um perdido em seu próprio orgulho, seu medo, sua inércia. Cada um sem ter a coragem necessária para, sim, dar a cara a tapa uma vez mais. Porque amor daquele tamanho merecia.

Mas eu não posso dizer isso. Só consegui ver duas pessoas caminhando em direções opostas deixando um rastro de coração pelo asfalto, pela calçada, pelos bueiros. Pelos sinais que estavam todos fechados como se, comovidos, tentassem indicar que aquele era o caminho errado.

Vi que foram, assim, cada um para um lado. Sabendo que viveriam uma vida que não era deles. E que outras pessoas teriam e criariam os seus filhos.

terça-feira, 31 de julho de 2007

culinária

Receita para felicidade? Que bobagem. Tantas outras mais eficientes.

Guacamole
- 1 abacate grande maduro (ou dois pequenos)
- 1 tomate maduro
- 1 pimentão verde (é a cor, não o ponto. O ponto é maduro também, se é que isso existe pra pimentão. A cor, aliás, pode ser qualquer uma. Mas imagino que seja melhor verde ou amarelo, pelo colorido da coisa, já que o tomate já é vermelho).

Amasse o abacate (se não for óbvio: sem casca e sem caroço), corte o tomate e o pimentão em pequeninos pedaços, misture tudo. Um pouco de sal, molho de pimenta vermelha de acordo com o gosto, uma espremidinha de limão por cima e... voilá.

Michelada
- Cerveja
- Limão
- Gelo
- Sal

É cerveja com um pouco de suco de limão e sal na borda.
“Descoberta”: um prato com sal, molhe a borda do copo, vire o copo no prato = sal na borda.
“Descoberta”: o ideal para uma caneca de cerveja é ¾ de limão espremido.

O caminho traçado:
1) Cerveja gelada
2) Cerveja gelada + um limão espremido + sal na borda
3) Cerveja gelada + ¾ de limão espremido + sal na borda + 3 cubos de gelo
4) Taco apimentado + michelada = ressonância perfeita. Experiência divina. Poros abertos.

Submarino
- 1 tulipa com cerveja
- 1 copinho com cachaça

O copinho da cachaça dentro da tulipa com cerveja. Vire. Aproveite.

Variação: tequila.

A invenção da noite
- Cachaça Seleta
- Espumante
- Chocolate (Hershey’s)
- Vista do Pão de Açúcar
- Pessoas agradáveis

Uma taça de espumante com cachaça.
Morda um tablete de chocolate, espalhe pela boca, feche os olhos, beba a mistura.

O nome da sensação:
Beira-Mar.



Pro futuro:
Menos receitas. Mais invenções.

um início...

Eram ambas ruivas. Foi assim que começou a amizade.
Poderia-se dizer também que eram ambas gordinhas, ou tinham sardas, ou que nenhuma das duas tinha outros amigos.

Poderia-se dizer que isso tudo era verdade. Mas elas sabiam que havia sido o ruivo. Aquilo que era motivo de graça para as outras crianças, para elas era motivo de orgulho. E a chegada de uma à escola da outra fez com que tivessem alguém que compreendesse a força por trás daquilo. A força secreta, elas diziam.

E realmente, juntas elas eram mais. As notas melhoraram, o humor, a timidez. Tornaram-se líderes de um grupo de amigos no qual não havia líderes.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Li o livro

sobre Muito Longe de Casa, Ediouro
(A Long Way Gone, Ishmael Beah)


Não que eu tenha orgulho em dizer isso, mas uma mentira mudou por completo a maneira como eu senti o livro de Ishmael Beah, “Muito Longe de Casa”. Esbarrei com o autor algumas vezes durante a FLIP, sem nunca conseguir ligar sua calma e cavalheirismo ao que havia lido sobre o livro. Isso porque não, ainda não havia lido o livro. E é provável que não o escolhesse em um passeio por uma livraria na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Sabe-se lá por quê, fui incumbida de entrevistá-lo, o que só foi possível por telefone, após o debate no qual meu choro foi contido pela revolta ao imaginar uma criança passando por tudo aquilo. E aí entra minha mentira: me passei por uma pessoa que havia lido o livro. Achei que seria uma tremenda falta de educação fazer perguntas a um autor sem ter lido seu livro, mas precisava cumprir ordens, e queria muito conversar com ele.

O questionamento que não saía da minha cabeça enquanto pensava na pauta era: o que leva uma pessoa, depois de passar por uma guerra civil em Serra Leoa, ver pessoas morrendo e depois de ter tido que participar dessa guerra, tendo que aprender a matar... O que leva essa pessoa a reviver tudo para fazer um livro?

E eu, do alto de meus bem nutridos 21 anos, ao me esforçar para tentar me colocar no lugar dessa pessoa, concluí que uma parte de minhas motivações seria me redimir, me confessar ou, melhor dizendo, me tornar novamente apta para a vida em sociedade. Não ter que me explicar em cada canto que passasse, esconder meu passado, ou dar satisfações. E foi com genuíno interesse que tive a audácia de transformar meu questionamento em uma pergunta, que Ishmael tranqüila e educamente respondeu, dizendo que tinha escrito o livro porque era uma história que precisava ser conhecida.

Agradeci a entrevista, e o agradeci por ter escrito o livro tendo certeza de que foi uma experiência difícil, mas com o olhar jornalístico que achava que deveria ter fazendo com que eu ainda tentasse pensar em motivações mais... poéticas, ou até “egoístas”. Algo como uma necessidade de escrever, a vontade de se expressar e se fazer ouvir, precisar recuperar suas memórias, ou qualquer bobagem desse tipo.

O que me levou à pergunta inteligente da entrevista, como ele via o título em português, que havia acrescentado a palavra casa ao original (“A Long Way Gone”). Ele disse que realmente o gone poderia se referir a mais coisas, mas que ao mesmo tempo casa para ele e para sua cultura é mais do que o lugar em que você vive. É o seu berço, onde você recebe seus valores, sua ética, sua maneira de encarar o mundo.

Li o livro. Posso dizer que é uma história que precisa ser conhecida, e recebida com corações e olhos abertos. Precisa ser lida, e talvez relida, de modo a evitar que nossa mente ao lê-la se perca em travellings, closes, zooms, cortes rápidos, e outras estratégias cinematográficas que a tornariam mais tragável.

É uma história que deve ser sentida como o que é: intragável, insuportável e, pelos deuses, inaceitável. Espero que os leitores se permitam sofrer o máximo que puderem, mesmo em realidades tão distantes da narrada, e que esse sofrimento se transforme em algum tipo de consciência. E que essa consciência se transforme em qualquer tipo de ação, ou compaixão que seja. Que a leitura desse livro posso transformar a maneira como encaramos, sentimos e interferimos nesse mundo.

Li o livro. E agora vejo, com dolorosa clareza, que se há alguém para ser perdoado ou redimido, somos nós e todos os que não fazem nada. Que seria mais provável que Beah tivesse escrito o livro como maneira de perdoar essa sociedade louca em que todos nós vivemos, e que o fez sofrer mais do que somos capazes de imaginar, e ter uma força que jamais saberemos se temos em nós. E agora sei por que fui a escolhida para entrevistá-lo: por não ser uma jornalista.

Li o livro. E posso agora responder à minha própria pergunta. Ishmael Beah escreveu o livro porque ele é um escritor. Ele é aquele que chegou ao limiar, na beira do abismo, sobreviveu e ainda teve a coragem, e a generosidade, de voltar para nos contar.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

cinema e música (ou "das reticências" ou "para ser ouvido com trilha sonora")

- ...
- ...
- O que foi?
- Nada.
- Você não queria estar me beijando?
- É complicado...
- ...
- ...
- Desde quando?
- Desde quando o quê?
- Desde quando você está com outra pessoa?
- ...
- ...
- Três semanas.
- ...
- ...

***

e poderia estar tocando
Love is just a game
Broken all the same
And I will get over you
Love is just a lie
Happens all the time
Swear I know this much is true

e poderia estar tocando
tinha cá pra mim que agora sim eu vivia enfim o grande amor
mentira

e poderia estar tocando tocando tocando sem parar
It's hard lookin' at you when you look that way
With your one night stands and your sleep all days
Ooh you're such a slut sometimes

Mas não. Preferiram tocar Marisa Monte. Preferiram que fosse tão bonito quanto havia sido, ou tão bonito quanto o bonito que havia sido merecia que fosse.
Aconteceu
O que aconteceu
Foi melhor assim
Estava por um fio
Estava por um triz
Estava já no fim
Todo mundo via
Que acontecia
Pois aconteceu

Na esperança de uma abertura, de uma brecha, de um sinal. De uma seqüência.

Até parece
Que não lembra que não sabe
O que passou
Não faz assim
Não faz de conta que não pensa
Em outra chance pra nós dois
Olha pra mim
Não me torture, não simule
Não me cure de você
Deixa o amanhã dizer

Do passado

Certo. Ele não canta mais no banho. Laura tinha tentado ignorar a distância do marido, a ausência do marido, a ausência sempre presente do marido. Mas nem presente ele estava mais. Fugindo, evitando, passando tempo demais fora de casa para um publicitário político fora de época de eleição. Ela sabia como funcionava. E aquele olhar culpado, que não consegue olhar nos olhos. Mas o que doeu mesmo foi a tristeza. Tristeza não compartilhada, escondida, mal disfarçada. Droga. Ele tem outra. Tem? Melhor do que achar que não a ama mais. Somente dois anos de casamento. Ela nem tinha conseguido ainda um apelido satisfatório para o nome Henrique.

Certo. Como foi que ele surgiu mesmo? Um dia o colocaram em seu departamento. Trabalharam bem juntos. Iam bem. Faziam o trabalho, se divertiam, conversavam. Era bom, o papo fluía, o trabalho fluía. Charmoso, ele. Bem charmoso. De um jeito inocente. Como quem não percebe o próprio charme. Sexy ele. Bem sexy. Um jeito de passar a mão no cabelo enquanto se exaltava em discussões filosóficas profundas. Isso era novidade pra ela. Discussões filosóficas profundas. Assim, de verdade. Conhecia só filosofia de mesa de botequim ou de beira de cama. Filosofia de verdade. Interessante isso. Tirando que ela não acreditava muito em filosofia. Preferia sexo. Ok. Sexo com ele. Interessante isso. Pensava de maneira inocente. Inocente? Ok, não inocente. Mas o casamento ia bem, estava no início, ela não pensava seriamente sobre o assunto. Mas gostava de como ele desapertava a gravata e colocava uma música no som do carro e cantava pra ele, e não pra ela. Conversavam sobre relacionamentos em geral, os seus específicos. Ela gostava de como ele via o amor. Mesmo quando não era amor. Gostava de como ele ficava um pouco sem-graça com sua abertura pra falar de sexo. Gostava de quando eles começavam a ficar bêbados e quase flertavam, mas aí ele falava de seu caso com a vizinha. E ela ficava um pouco decepcionada. Mas tudo bem. Também seria difícil arranjar um apelido para Rodolfo.
Certo. Respirar fundo e abstrair. Você é uma mulher casada.

Mas.... Henrique também era casado. E isso não o impedia de chegar tarde com desculpas esfarrapadas e uma falta de perfume bastante suspeita. Não havia o dela (a outra, a amante, a biscate, a rapariga de beira de estrada) mas também não havia o dele. Aquele que mesmo no final do dia persistia quando eles se abraçavam após um dia inteiro separados. Ela só pensava nele se lavando antes de ir do motel pra casa e nem sequer considerava a possibilidade de ela mesma estar esquecendo que sentir cheiros faz parte do amor. Ou seria da paixão? Ela sempre teve problemas em diferenciar.

E, afinal, o problema não era ela, que sempre fora fiel. O problema era ele. Tudo bem, ela sempre teve o discurso de que não era traição sentir atração por outras pessoas, e mesmo consumar essa atração. Muito pelo contrário, melhor isso do que ficar pensando em outra estando com ela. Mas ele estava consumando a atração (como um coelho, pela quantidade de desculpas na última semana) E pensando na outra enquanto estava com ela. ISSO era inadmissível. Assim Laura não teve a oportunidade de ver que mesmo que ele tivesse permanecido igual em casa, saber que ele havia tido alguma coisa com outra a teria magoado profundamente. E pôde continuar com seu discurso liberal.

Pôde até se redimir da culpa que sentia pela atração por Rodolfo, mas que provavelmente não assumia nem para si mesma como culpa. Afinal, era uma liberal, ora. Quase uma libertina em sua relação monogâmica com proposta de durar para sempre.
Escritório. Trabalham. Certo. Conversam um pouco também. Certo. Conversam bastante também. O importante é entregar no prazo, dizem. E dizem mais coisas também. Dizem tudo. Tudo? Ok, não tudo. Não é bom dizer tudo, dizem. Um dia ele chora no ombro, sem dizer muita coisa. Às vezes é bom não dizer muita coisa. E ela sente um pouco de ciúmes e um pouco de raiva (qual dos dois mais?) de quem o fez chorar. Parecia choro de amor não correspondido. E ela pensou que gostaria de tê-lo encontrado em outro momento, e ter feito ele feliz. Em outro dia ela quer chorar no ombro dele. Ou quer querer chorar no ombro dele, mas se sente tão bem que esquece do que a faria chorar. E conversam mais um pouco.

Tomam um chope. Um chope, nesse caso, quer dizer três. Talvez quatro. E ela finge que é blasé (provavelmente acreditando que seja) e diz assim, meio blasé, que já sentiu uma atração por ele. Ele leva um susto, diz que também já sentiu uma atração por ela. E ela não sabe porque disse isso, e nem porque ficou tão decepcionada com isso dito assim, de uma maneira tão blasé, e usando o pretérito perfeito. E eles ali, tomando um chope.

E ela, que sempre se sentiu tão à vontade com ele, está um pouco sem-graça. Será que dava pra perceber? Que ela mexia no cabelo um pouco nervosa e pensava “Droga! Será que ele reparou que eu mexi no cabelo um pouco nervosa?” e ria, um pouco nervosa. Será que tentam ser maduros? Certo. Sem problema. É possível manter a amizade, a relação de carinho, de coleguismo. Certo? Talvez fosse mais fácil se a vontade de beijar ele não aumentasse em uma progressão geométrica, enquanto diminuía a vontade de beijar Henrique. E uma expectativa, uma culpa, uma preocupação com ela, com ele, com Henrique, com o futuro, com o presente, com a amizade. Pensou que gostaria de ser leve. Seria bom ser leve.

E Rodolfo? Não sabia se queria para ele um envolvimento com uma mulher casada, complicada, que não conseguia ser leve... E. Ah. Droga. Pensou que gostaria de tê-lo conhecido em outro momento. E se torturava, e continuou se torturando até momento em que, não sabe bem como, eles se beijaram. Deviam estar conversando. Difícil dizer. Só sabe a boca dele estava se mexendo. Provavelmente dizia algo interessante, ele sempre dizia algo interessante. Provavelmente não tão interessante quanto a boca, mas ainda assim, interessante. E seu coração batia forte de um jeito que doía um pouco.

Sim, mas... E Rodolfo? O que se pode dizer é que Rodolfo descobriu que quando se aproxima dessa forma do que se quer tanto que só o querer já é uma felicidade, seu coração não bate desenfreadamente e escapa pela boca. Seu coração pára. Por um instante que não se sabe ao certo quanto durou (mas que certamente não foi o suficiente) tudo faz sentido. Até a filosofia.

Ou será que nada faz sentido além daquele momento? Algo por aí.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Do tempo, da sorte, e de outros deuses do amor

Uma pessoa quis primeiro. A outra só quis depois. Ou a outra só percebeu depois. Ou a outra só assumiu depois. Ou a outra só declarou depois.

Duas pessoas queriam ao mesmo tempo. Só que uma demorou a vir. Uma hesitou em demonstrar. Ou demonstrou mas demorou a se acertar. Ou se acertou mas a outra precisou ajudar.

Duas pessoas queriam ao mesmo tempo uma à outra. De intensidade assim: dois corpos juntos transbordando juntos e chorando juntos se escondendo juntos se mostrando aos poucos e na junteza descobrindo que podiam mais juntos, que se reconheciam mais juntos, cada um a si e um ao outro.

Duas pessoas queriam ao mesmo tempo e descobriram que quando o mesmo tempo era um só, não eram mais duas pessoas.

Duas pessoas queriam ao mesmo tempo e não perceberam que quando o mesmo tempo era mais que um, e sabe-se lá quantos, eram somente duas pessoas. E as duas pessoas que eram quando os tempos não se encontravam se desencontravam ainda mais do que quando não queriam ao mesmo tempo. E sentiram, sem conseguirem se aperceber, que o desencontro de uma ia ferindo a outra. Que sempre uma das duas pessoas que se queriam ao mesmo tempo sangrava uma dor que só podia ser curada quando os tempos voltavam a ser um só.

Duas pessoas que se queriam ao mesmo tempo foram vivendo uma vida de abrir a carne uma da outra, deixar em brasa e fazer sangrar. Tendo que a cada noite juntar os tempos para lamberem-se as dores, curarem-se as mágoas e choraram-se os prantos de transbordamento que limpavam aqueles de dor.

Duas pessoas que se queriam ao mesmo tempo não sabiam que não dependia só delas juntar o tempo. Que o Tempo tem sua própria vontade, e que a vontade do Tempo pode ser muito mais forte que a de duas pessoas que se querem ao mesmo tempo, principalmente quando elas eram somente duas pessoas.

Duas pessoas que se queriam ao mesmo tempo não conseguiram parar de se machucar, e conseguiam cada vez menos juntar os tempos, fundir os corpos, e os tambores entraram em descompasso. E o ritmo dos tambores trocados foi confundido com o dos corações, não demorando para que as pessoas que se queriam ao mesmo tempo não conseguissem nem sentir a batida que bate igual nos corações de quem quer ao mesmo tempo.

Duas pessoas que se queriam ao mesmo tempo não viam mais a sorte que era encontrar uma à outra. E a Sorte, magoada, também passou a jogar contra. E as duas pessoas que queriam ao mesmo tempo poderiam jurar que os obstáculos que o Tempo e a Sorte colocavam no caminho de ambas era culpa da outra. E logo o caminho único das duas se tornou dois só. Tão só.

E os caminhos só das duas pessoas que haviam se querido ao mesmo tempo teimavam em se esbarrar, porque caminho só também tem suas vontades, e a vontade deles era se juntar de novo (na sabedoria daqueles que têm muita vontade e nenhuma razão). Só que as duas pessoas não conseguiam usar o esbarrão pra juntar os caminhos, na dor sentida e cheia de razão de cada uma das duas pessoas que deixaram de ser uma só e eram agora muito menos da metade do que foram.

E nesse só de só de caminho sozinho de cada uma, só restava oferendar à Sorte e ao Tempo, que também já haviam sido, noutros tempos de mais sorte, dois que eram um.

sábado, 9 de junho de 2007

Wakening Call

A porta bate violentamente.
Chamado pra vida?
Ou foi só o vento?

É dito que 11:11 é uma hora cabalística
Astrológica
Mística
É dito que os portais energéticos se abrem.
Às 11:11
Chamado pra vida?

Ele fica sentado esperando os chamados e se esquece de olhar pela janela, onde ela passa.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

2046


O Mar, de John Banville

Alguns trechos dessa pequena obra-prima como recomendação fervorosa:

“O passado está pulsando no meu peito, como um segundo coração”

“Desviei os olhos com medo de que eles pudessem me trair; os olhos de alguém são sempre de outra pessoa, daquele gnomo louco e desesperado que fica encolhido ali dentro.”

“A água ferveu e a chaleira desligou sozinha. A água, ali dentro, foi se aquietando, mal-humorada. Fiquei impressionado, e não foi a primeira vez, com a complacência cruel das coisas comuns.”

“... continua sorrindo para mim daquele modo meio desfocado, que, agora me dou conta, era o jeito como olhava para tudo, como se não estivesse absolutamente convencida da solidez do mundo...”

"Mas por outro lado, em que momento a vida não muda inteiramente, até aquela última mudança, a mais momentânea de todas?"

A respeito dele aqui

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Scooby dooby doo

Já faz algum tempo eu descobri que tenho um filho.
Não tive a dor de parto, as estrias, os enjôos, não engordei.
Provavelmente, por outro lado, perco grandes momentos.

Imagine um ser lindo, lindo, com menos de 3 anos, menos de um metro de altura, que se diz Fred e para quem eu sou a Daphne.

A mãe dele ficou com ciúmes. Disse que a Daphne era ela. Ele quase chorou. Ela perguntou porque não podia ser a Daphne enquanto trocava de roupa. Ele respondeu, naturalmente, apontando toda a obviedade da coisa, aquela que escapava aos nossos limitados olhos de gente grande:

- Porque você está pelada, mamãe!

Mas é claro! Que grande absurdo ela estava propondo. Ser a Daphne estando sem roupas... Mantive o meu posto. E ainda criamos um código secreto para que a Welma pare de tentar roubar o meu lugar.

Que venham os fantasmas e os ursos que se escondem nas paredes! Nós estamos preparados pro que der e vier.

na voz de gal

Não choro
Meu segredo é que sou
Rapaz esforçado
Fico parado, calado, quieto
Não corro
Não choro
Não converso

Massacro meu medo
Mascaro minha dor
Já sei sofrer
Não preciso de gente
Que me oriente

Se você me pergunta:
Como vai?
Respondo sempre igual:
Tudo legal

Mas quando você vai embora
Movo meu rosto do espelho
Minha alma chora
Vejo o Rio de Janeiro

Comovo, não salvo, não mudo
Meu sujo olho vermelho
Não fico parado
Não fico calado
Não fico quieto
Corro, choro, converso e tudo mais
Jogo num verso
Intitulado o mal secreto

Undefined

Ela dizia que não chorava na frente dos outros.
E chorou tanto na minha...
Nunca soube se era péssimo da minha parte ficar ligeiramente lisonjeada.
Porque ela estava, afinal, chorando.
Mas ela fazia parecer uma coisa ótima.

Como era cena das mais lindas, nunca discuti.

domingo, 3 de junho de 2007

Ói meu nariz

Todas as pessoas que me amaram gostavam do meu nariz.
Eu não gosto do meu nariz.
Engraçado isso, né? E de tanto elas gostarem, passei a gostar um pouco também.

E daí fiquei pensando... Será que é do amor isso? Fazer a pessoa amada gostar do que acha que é defeito em si? Achar adorável aquilo que faz o outro sentir uma certa vergonha?

Só pra perceber que é um grande erro que muita gente comete isso de tentar definir o que é do amor. O que é o amor.

Pode ser que um dia uma pessoa me ame odiando meu nariz.

Será? Espero que não.

Hit

Às vezes me sinto tão... inapta? Existe, não existe? Sim, existe. Mas queria, nesse momento, saber exatamente o que significa. Porque estou dizendo que é como me sinto. E acho que me devo, agora mais do que nunca, ter mais precisão quanto às coisas que eu sinto.

Não tenho dicionário aqui. O quarto ao lado está fechado. O Google não ajudou.

Inapta. - Não, não vou entrar nos meandros etimológicos. Olha a tentação dos velhos hábitos... É isso o que faço, sabia? Eu me prendo a fatos pra não ter que pensar (lidar com? Falar sobre?) no que sinto. Posso contar uma história inteira narrando tudo o que todas as partes disseram. Em detalhes, chega a ser chato. Mas dificilmente falo sobre o que eu senti. E, no entanto, tenho sempre a impressão de me expor demais.

Inapta. Tem sido muito freqüente minha sensação de não-pertencimento. Não pertenço. Estou lá, estou aqui, mas não é a minha vibe, minha onda, minha turma, meu papo, minha praia, meu domínio. E não sei se nada disso me pertence, se não encontrei o que é meu, ou se não aprendi a lidar com o fato de que não sou do mundo. De um mundo específico. Talvez eu seja da vida. Talvez isso seja bom.

A cada dia a estrada cresce mais em mim. Quero a estrada. A falta de rumo, de prumo, de eira, de beira, de fim. A cada dia sinto mais claramente que só vou olhar pra dentro, só vou me encontrar caindo fora. Quero cair fora.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Músculo Oco

- Olá, pode entrar.
- Olá. É... Doutor? Eduardo.
- Não, não. Eduardo, só.
- Sim, claro.
- Por favor, queira se deitar.

Ficou reparando no teto descascado. Achou um descascado diferente. Ficou surpresa de achar um descascado bonito. Estava tentando se distrair para não ficar nervosa com as mãos dele passeando por seu corpo. Quer dizer, assim parece até erótico. Suas mãos passeando a menos de um centímetro do seu corpo. Ela não olhava, mas imaginava que ele estivesse de olhos fechados. Fechou os seus também. Sabia em que lugar as mãos dele estavam pelo estranho calor que emanavam. Ou era um calor que elas geravam nela? De qualquer maneira, o medo que sentia ao chegar estava passando. Quase não pensava no que já tinha ouvido falar sobre os procedimentos: era como se uma mão entrasse no seu corpo e retirasse algo. Ao final, a pele estaria intacta. E o lençol manchado de sangue.

- Você sabe por que veio aqui?
- Porque uma amiga havia comentado comigo sobre esse lugar.
- Sim, mas o motivo? O que você veio curar, você sabe?
- Sei... Quer dizer, não... Mas sei que há algo errado.
- Uhum. Procurou um médico?
- Procurei.
- E o diagnóstico?
- Depressão.

Ela sentiu quando as mãos dele se retiveram na altura de seu seio esquerdo. O calor aumentou. Primeiro na pele, e em seguida por dentro. Quente,quente,quente. Seucoraçãodisparou, espera! Seu coração. Era a temperatura dele aumentando, era lá que a mão estava. Tudo tão quente, tudo tão rápido, rápido, rápido, rápido: o coração é um músculo oco oco oco, localizado no meiodopeitodeslocadoligeeeiramente para a esquerda. Do tamanho de um... punho fechado.

E saiu. A mão saiu. Saiu? Mas se o punho estava fechado (estava fechado?), seu coração ainda estava lá? Estava. Sentiu. Batendo mais calmo, tão mais calmo. Não se lembrava mais dessa calma. Uma certa... paz. “Marina...”, ouviu seu nome. Ele a estava olhando no olho, e ela em paz. Mas não. Ela ainda estava deitada, e com os olhos fechados, e de repente se perguntou se seu coração havia jorrado sangue. Abriu. Os olhos. Se confirmou aquela sensação de... Agora, sim, ele a estava olhando no olho.

- Doutor...
- Eduardo, só.
- Qual foi o diagnóstico?
- ...Coração partido...
- E você me curou. (emocionada?)
- Eu não fiz nada. Você caiu no sono.
- Mas...

E a mão? E o punho fechado no coração? E aquele calor e a solução?

Olharam-se nos olhos. E o ao redor se calou.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Quase um filme



La voisine d'en face. Rome, 1995.

Tragédias Cariocas(?)

Rio, 19 de Maio de 2007
Hoje é sábado. Ele disse que talvez viesse, eu acreditei. De burra que sou. É óbvio que ele não vai deixar de sair com a mulher no sábado, jantar com o sogro, ir ao cinema, sei lá que merda que eles fazem, pra sair com a outra. Ou será que vai dar um jeito e vem? Onze da noite já.

Rio, 20 de Maio de 2007
Hoje ele veio. Pediu desculpas, trouxe presente, disse que era atrasado de dia das mães porque ainda ia ter um filho meu. Também quero ter um filho dele, só serve dele. Minha retribuição foi na cama, depois eu queria dormir abraçado, nunca dormiu comigo... Mas não podia, a mulher tinha alugado um DVD. Ele bem que queria ficar, claro. Quase chorou, tadinho. Mas a cachorra tá aí pra atrapalhar a vida...

Rio, 21 de Maio de 2007
Cansei disso. Cansei dessa vida. Hoje fiquei com saudade e fui ver ele no escritório. Qual é o problema nisso?! Pensei em, sei lá, a gente almoçar. Ou dar um beijinho no banheiro, até escondido aceitava. Não vejo o mal. O puto fingiu que não me viu, passou direto, quase correu! Agora me paga também. Amanhã vou na casa dele. Resolver com a frígida da mulher.