sábado, 29 de setembro de 2007

sobre O Banheiro do Papa




A premissa é simples: homem decide construir um banheiro para ser alugado durante a visita do Papa à sua cidade. Em um cinema mais clássico, essa informação apareceria logo de cara, com 20 minutos de filme, no máximo. Mas em O Banheiro do Papa (de César Charlone e Enrique Fernandéz), lá se foi meia-hora até que o protagonista tenha essa idéia. Nesse tempo, Beto e sua família foram apresentados.

Ele é um pequeno contrabandista, que vive das viagens que faz de bicicleta atravessando a fronteira entre Brasil e Uruguai. Sua mulher está sempre segurando a onda do marido, suas brigas, suas idéias, sua falta de dinheiro. A filha quer mais da vida, quer sair da cidadezinha e ser repórter em Montevidéu.

Mais do que trama e personagens, no entanto, a primeira meia-hora de filme nos propõe um certo ritmo, mais lento, calcado em pequenos acontecimentos que acabam sendo grandes para aquelas pessoas comuns. Nos introduz à maneira como essas pessoas serão tratadas, ao olhar que está sendo lançado sobre elas. E é um olhar generoso, que respeita o tempo delas, a rotina da cidade. Que não esconde os erros do protagonista, mas se concentra em seus acertos. É um olhar que se incorpora ao objeto, tornando-se parte dele, não lançando nenhum tipo de julgamento.

À medida em que a chegada do Papa se aproxima, fareja-se a iminência da tragédia, com Beto ultrapassando seguidamente a própria medida, fazendo de tudo por um sonho que mostra-se cada vez mais distante. Percebe-se, nesse momento, a importância estética e narrativa da fronteira Brasil-Uruguai, uma constante para o personagem e para o filme, que ganha um quê de road movie. Porque, pelo contraste com a estrada, fica claro o porto seguro que sua casa e sua família representam.

Assim, uma trajetória que tinha tudo para ser melodramática, e foi se delineando em direção ao trágico, tornou-se épica. Apesar de terem sido traídos pelo destino, os personagens não se deixam abater. E Beto, que caminhou à beira do abismo, chegando a fazer um metafórico pacto com o diabo, é resgatado, nos deixando sem saber quem é o herói. Se é ele, a mulher, a filha, a cidade ou, quem sabe, todo esse nosso continente ao sul.

replay aqui

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

o beijo da prefeitura

- Mas todo mundo sabe que aquela foto do Doisneau foi encenada.
- ...
- ...
- Não foi, não.
- Foi, sim.
- É claro que não foi. Como se alguém fosse capaz de reproduzir um momento daqueles...
- Ué, e o cinema faz o quê?
- Cinema é diferente.
- São várias fotos juntas...
- Ai, claro que não... Cinema você põe o movimento, as palavras, a música... É muito mais fácil. Fotografia é um plano. Só.
- Enfim, Marina, não importa. A foto é encenada.
- Cara, a gente tá falando da mesma foto? A foto nem é perfeitinha, os braços deles tão no meio do caminho, o cara parece o Bon Jovi, na época isso devia ser uó... Cara, Pedro, a velha que tá atrás fica chocada com o beijo! É lindo, é foda pra caralho!
- Eeei, não precisa gritar! Não tô falando que não é foda, tô falando que é fake. Todo mundo sabe disso.
- ...
- ...
- Por que você tá fazendo isso comigo?

O rapaz nem tentou ir atrás. Não ia dar corda pra uma bobagem daquelas, garota teimosa, grossa ainda por cima, mimada, ninguém pode contrariar, ainda devia tá de TPM e ele ia ter que ouvir mais aquela voz alta esganiçada de quando ela ficava nervosa e provavelmente só ele achava fofa no mundo todo.

Ele nem tentou ir atrás, e ela só queria que ele fosse atrás, que ele conseguisse provar que não, que não era invenção, encenação, pose, reprodução, mentira. Ela chegou a diminuir a velocidade, chegou a parar, chegou a virar.

Ela só queria que ele provasse que amor daqueles existia.

Devendra Banhart - A Ribbon

cores de Michel Gondry

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

p/b

Se pensassem nela, em uma imagem, em uma foto, seria em preto e branco. Certamente em preto e branco. Talvez o som chegasse antes, bem calmo, de mansinho, vindo num trem sem pressa lá de longe e de repente tão perto que ninguém se apercebeu que aquele mistério de fumaça da maria já se foi. Pra voltar daqui um cadinho, que é daquelas fumaças de névoa, de sereno, de verdade, que fazem parte de uma paisagem boa que às vezes pode até ser mais difícil de traçar mas por isso mesmo está sempre ali pra quem souber ver.

E na voz que vem cantada, ou nem cantada, ritmada, não se sabe se é de sotaque ou da calma que não é de paz de quem não precisa falar muito, quem sabe nada, pra que todo mundo veja, escute, sinta, leia que tem um mundo mundaréu desenhado pelas fumaças de um cigarro.

Mundo mundaréu que nem dá pra dizer se é grande enorme baleia voando no céu zeppelin que passa e vê as coisas, as dores, os amores de quem vai andando lá embaixo, aqui do lado, do lado de lá. Ou se é pequeno punho fechado coração lá dentro que bate enquanto vai andando e esbarrando e explodindo explosão de supernova estrela sapeca que se deixa levar barco de papel que existe somente na iminência de seu fim. Porque até o fim é bonito nas palavras de quem sabe escrever porque precisa, com o mundo escapando entre os dedos.

E não é mundo meu, mundo seu, mundo nosso, é mundo dela, tão dela, imagem na tela, tão bela, canção na janela, singela. Com a generosidade daqueles que se expõem ao dividir uma visão (de), um mundo, um coração partido, uma dor doída chorada secreta quem sabe, personagens que “às vezes” são mais biografia que ficção e é lindo que sejam e sempre será com quem se dá numa música, num poema, numa história, ou no cinema.

Se pensassem nela se emocionariam. Por saber que nossos tempos ainda permitem que se façam essas pessoas que chegam no limite, que andam na corda bamba, caem, se machucam, sangram, sorriem sorrisos de amores verdadeiros e que têm a coragem de fazer disso tudo coisas belas, ou tristes, ou sujas, ou confusas, ou isso tudo, enfim. Convencionou-se chamá-las de artistas. E, olhando pra ela, é o que se vê.





Mas gostaria que, nesse momento, ela pensasse em cores.

Holly Shit: Part III - Jim Dodge

The need for mystery is greater than the need for an answer.
– Ken Kesey

(...)

I believe every atom of creation
Is indelibly printed with divinity.
I believe in the warm peach
Rolled in the palm of my hand.
I believe God plays the saxophone
And the Holy Ghost loves to dance.

And I believe we are born to both fate and chance,
That we’re meant to chase ourselves
Through the labyrinths of desire,
Get lost, slaughtered, and discover
Extravagant pleasures lusciously prolonged.
And I believe that we can only attain such detachment
Through total, unstinting attachment to this world,
Here and now, all, every bit,
By getting your face in it
And throwing your self away.

I believe that faith is a reflex of gratitude
And that faith demands we go down singing
Rather than dwindle into constant snivel
Because existence won’t give us what we want.

I believe every voice in the choir,
Every breath-born note and syllable, the bell ringing,
Every quiver of sound.
And I believe most of all
My belief is not required.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Avant

E aquilo que eu te disse, você lembra?
De um abraço, de um sorriso, de um poema.
De um encontrar na esquina e não ser cena.
Não ter ensaio, nem roteiro, só cinema.

E aquilo que eu te dei, você guardou?
Ou deixou na estante e não usou?
Você que nunca entendeu que eu vejo em cor
E só a sua fumaça é black and white
Slow motion
Luz e sombra
Melodrama

Logo você, que cisma ser nouvelle vague
Nesses cortes descontínuos, jump cut
Sempre pára olha pra outro, por cima do muro, pula, vai, vem, volta, some e roda,
roda,
roda,
roda,
sem perder o equilíbrio, eu que caio, sempre caio, enquanto você pára. E olha pra câmera.

Logo eu, que só queria ser agora.
Só queria ser vanguarda de você.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Untitled Love Story

Foi andando pela rua assim andando se esforçando para se manter andando e em movimento e pra frente que pra frente é sempre um lugar melhor para se estar, ia pensando ela entre outras coisas que ia pensando enquanto ia andando sem perceber que já ia correndo.

E nem chegou a perceber, só percebeu que lhe faltava ar e foi a melhor sensação que tinha em horas, que tinha em dias, que tinha em meses. A sensação clara de que lhe faltava ar. Uma falta que ela conseguia sentir, explicar, pensar em sua solução, e saber onde exatamente no corpo aquilo estava.

Pela primeira vez em meses ela soube localizar uma sensação em seu corpo (naqueles pulmões pouco percebidos dos quais ela tinha agora não só orgulho como gratidão).

Porque se no início era uma língua na nuca, uma borboleta no estômago, um formigamento em partes que ela não sabia capazes de formigar, uma irradiação cada vez diferente, cada vez começando em um ponto e indo para outro cada vez diferente como diferente o lugar, a posição, o olho no olho, as palavras no ouvido, os cantos da casa, as receitas, os segredos, as conchas.

Se no início tudo isso... E era o que ela pensava do início, esse início ideal que ela nem lembrava que não era tão ideal assim, esse início de vida real. Não era ele que ela idealizava, nem ela. Era o início. E a foto, era o que achava ele. E ela não lembrava que desde o início houve aquela foto. Em preto e branco, é claro, por motivo de poesia.

E lá ela se viu. Se viu pelos olhos dele, e quem era ele mesmo? E com a foto ainda secando foi procurar o autor dela. Dela ela própria, que sentiu como se nascesse, ao menos uma parte de si, ao olhar aquele retrato que ela nem sabia que havia sido tirado. E o encontrou. Ele que, como pode-se deduzir de alguém que consegue ver algo na alma de outra pessoa, já a amava. E ela o amou, como teria amado de qualquer maneira ainda que demorando mais para perceber (o Chevete que ele dirigia não ajudava).

Mas ele nunca acreditou, desde o início, e aceitou a entrega dela achando – sabendo, diria ele – que ela amava a foto, que ela amava a si mesma na foto. E não ele. Mesmo ela sabendo que não. E sabendo que se a foto nunca mais fosse mencionada, ela só lembraria como aquele-objeto-maravilhoso-que-nos-uniu. E, meu-bem-poderia-ter-sido-uma-escova.

Claro está que a dúvida corroeu o pobre rapaz. (Caso não esteja, consideremos que a vida lhe dotou de uma capacidade de se considerar um personagem trágico e a vontade de agir como tal.) E a pobre moça de maneira ainda mais dolorosa, uma vez que a dúvida não era dela, ela só tinha certezas. E a partir daí, onde quer que tenha sido esse ponto em que eles não conseguiam mais ter momentos em que não pensavam em dúvidas ou certezas (palavras, afinal), ela parou de sentir em que lugar do corpo estava sentindo. Seria o corpo todo, ou o corpo nada, que corpo é esse que precisava daquela mão, daquela boca e onde estão, e onde está que está aqui do lado e tão longe e se não está aqui... Está na foto.

E agora ia andando sem perceber que ia correndo e com a foto na mão e só a foto mais nada nem chave nem celular, como se pra quê serviriam se sua vida perfeita estava se arruinando com aquela foto, naquela foto, e sem ele pra quê viver e sem viver para quê celular... E parou, recuperou o fôlego, sentiu os pulmões. E percebeu que passara a última meia hora formulando as frases mais ridiculamente dramáticas de sua curta existência. Melodramáticas, na verdade. E lembrou de todos os hábitos detestáveis que ambos cultivavam, desde o início, as piadas, a diferença notável no senso de humor de cada um, como ela odiava a mãe dele, desde o início. Nesse início que não era ideal, estava longe de ser. O sexo é que era melhor.

Parou então no meio da rua, adorando estar descabelada e ofegante e as pessoas olhando porque a leveza que lhe dava saber que não precisava se descabelar e ofegar (não nesse contexto, veja bem, que essas coisas podem ser maravilhosas) era de paz.

Rasgou a foto. Deixou em cima da mesa dele, picotada. Ao lado da porta, deixou suas malas e um casaco por cima: “meu-bem-você-me-trocou-por-uma-obsessão-e-agora-me-perdeu”. Ele chegou, a mala, a foto, e a amou como nunca, ou de uma forma um pouco diferente, naquele sentimento de quem não consegue falar o que realmente sente e o alívio, a satisfação, o prazer que é quando a outra pessoa advinha, e a amou como nunca sem nem pensar que gostava de falar “gostosa” e ela não reparou que nem pediu um tapinha na cara, e como ambos faziam isso desde que tinham descoberto o dirty talking com outras pessoas e como não haviam se deixado descobrir outras coisas e como dessa vez não foi uma fantasia que fez ele rasgar a calcinha dela, foi uma coisa que aconteceu como aconteceu ela ter adorado naquela adoração de quem quer quase chorar de tanta coisa transbordando e que por transbordamento consegue pagar o melhor boquete ever sem nenhuma baboseira freudiana de falo, poder e submissão, só duas pessoas que não querem negar que são uma da outra.










A mala, ao lado da porta, estava vazia.
E em alguma gaveta, escondida, uma cópia da foto.
Mas poderia ter sido uma escova.