quarta-feira, 18 de julho de 2007

Do passado

Certo. Ele não canta mais no banho. Laura tinha tentado ignorar a distância do marido, a ausência do marido, a ausência sempre presente do marido. Mas nem presente ele estava mais. Fugindo, evitando, passando tempo demais fora de casa para um publicitário político fora de época de eleição. Ela sabia como funcionava. E aquele olhar culpado, que não consegue olhar nos olhos. Mas o que doeu mesmo foi a tristeza. Tristeza não compartilhada, escondida, mal disfarçada. Droga. Ele tem outra. Tem? Melhor do que achar que não a ama mais. Somente dois anos de casamento. Ela nem tinha conseguido ainda um apelido satisfatório para o nome Henrique.

Certo. Como foi que ele surgiu mesmo? Um dia o colocaram em seu departamento. Trabalharam bem juntos. Iam bem. Faziam o trabalho, se divertiam, conversavam. Era bom, o papo fluía, o trabalho fluía. Charmoso, ele. Bem charmoso. De um jeito inocente. Como quem não percebe o próprio charme. Sexy ele. Bem sexy. Um jeito de passar a mão no cabelo enquanto se exaltava em discussões filosóficas profundas. Isso era novidade pra ela. Discussões filosóficas profundas. Assim, de verdade. Conhecia só filosofia de mesa de botequim ou de beira de cama. Filosofia de verdade. Interessante isso. Tirando que ela não acreditava muito em filosofia. Preferia sexo. Ok. Sexo com ele. Interessante isso. Pensava de maneira inocente. Inocente? Ok, não inocente. Mas o casamento ia bem, estava no início, ela não pensava seriamente sobre o assunto. Mas gostava de como ele desapertava a gravata e colocava uma música no som do carro e cantava pra ele, e não pra ela. Conversavam sobre relacionamentos em geral, os seus específicos. Ela gostava de como ele via o amor. Mesmo quando não era amor. Gostava de como ele ficava um pouco sem-graça com sua abertura pra falar de sexo. Gostava de quando eles começavam a ficar bêbados e quase flertavam, mas aí ele falava de seu caso com a vizinha. E ela ficava um pouco decepcionada. Mas tudo bem. Também seria difícil arranjar um apelido para Rodolfo.
Certo. Respirar fundo e abstrair. Você é uma mulher casada.

Mas.... Henrique também era casado. E isso não o impedia de chegar tarde com desculpas esfarrapadas e uma falta de perfume bastante suspeita. Não havia o dela (a outra, a amante, a biscate, a rapariga de beira de estrada) mas também não havia o dele. Aquele que mesmo no final do dia persistia quando eles se abraçavam após um dia inteiro separados. Ela só pensava nele se lavando antes de ir do motel pra casa e nem sequer considerava a possibilidade de ela mesma estar esquecendo que sentir cheiros faz parte do amor. Ou seria da paixão? Ela sempre teve problemas em diferenciar.

E, afinal, o problema não era ela, que sempre fora fiel. O problema era ele. Tudo bem, ela sempre teve o discurso de que não era traição sentir atração por outras pessoas, e mesmo consumar essa atração. Muito pelo contrário, melhor isso do que ficar pensando em outra estando com ela. Mas ele estava consumando a atração (como um coelho, pela quantidade de desculpas na última semana) E pensando na outra enquanto estava com ela. ISSO era inadmissível. Assim Laura não teve a oportunidade de ver que mesmo que ele tivesse permanecido igual em casa, saber que ele havia tido alguma coisa com outra a teria magoado profundamente. E pôde continuar com seu discurso liberal.

Pôde até se redimir da culpa que sentia pela atração por Rodolfo, mas que provavelmente não assumia nem para si mesma como culpa. Afinal, era uma liberal, ora. Quase uma libertina em sua relação monogâmica com proposta de durar para sempre.
Escritório. Trabalham. Certo. Conversam um pouco também. Certo. Conversam bastante também. O importante é entregar no prazo, dizem. E dizem mais coisas também. Dizem tudo. Tudo? Ok, não tudo. Não é bom dizer tudo, dizem. Um dia ele chora no ombro, sem dizer muita coisa. Às vezes é bom não dizer muita coisa. E ela sente um pouco de ciúmes e um pouco de raiva (qual dos dois mais?) de quem o fez chorar. Parecia choro de amor não correspondido. E ela pensou que gostaria de tê-lo encontrado em outro momento, e ter feito ele feliz. Em outro dia ela quer chorar no ombro dele. Ou quer querer chorar no ombro dele, mas se sente tão bem que esquece do que a faria chorar. E conversam mais um pouco.

Tomam um chope. Um chope, nesse caso, quer dizer três. Talvez quatro. E ela finge que é blasé (provavelmente acreditando que seja) e diz assim, meio blasé, que já sentiu uma atração por ele. Ele leva um susto, diz que também já sentiu uma atração por ela. E ela não sabe porque disse isso, e nem porque ficou tão decepcionada com isso dito assim, de uma maneira tão blasé, e usando o pretérito perfeito. E eles ali, tomando um chope.

E ela, que sempre se sentiu tão à vontade com ele, está um pouco sem-graça. Será que dava pra perceber? Que ela mexia no cabelo um pouco nervosa e pensava “Droga! Será que ele reparou que eu mexi no cabelo um pouco nervosa?” e ria, um pouco nervosa. Será que tentam ser maduros? Certo. Sem problema. É possível manter a amizade, a relação de carinho, de coleguismo. Certo? Talvez fosse mais fácil se a vontade de beijar ele não aumentasse em uma progressão geométrica, enquanto diminuía a vontade de beijar Henrique. E uma expectativa, uma culpa, uma preocupação com ela, com ele, com Henrique, com o futuro, com o presente, com a amizade. Pensou que gostaria de ser leve. Seria bom ser leve.

E Rodolfo? Não sabia se queria para ele um envolvimento com uma mulher casada, complicada, que não conseguia ser leve... E. Ah. Droga. Pensou que gostaria de tê-lo conhecido em outro momento. E se torturava, e continuou se torturando até momento em que, não sabe bem como, eles se beijaram. Deviam estar conversando. Difícil dizer. Só sabe a boca dele estava se mexendo. Provavelmente dizia algo interessante, ele sempre dizia algo interessante. Provavelmente não tão interessante quanto a boca, mas ainda assim, interessante. E seu coração batia forte de um jeito que doía um pouco.

Sim, mas... E Rodolfo? O que se pode dizer é que Rodolfo descobriu que quando se aproxima dessa forma do que se quer tanto que só o querer já é uma felicidade, seu coração não bate desenfreadamente e escapa pela boca. Seu coração pára. Por um instante que não se sabe ao certo quanto durou (mas que certamente não foi o suficiente) tudo faz sentido. Até a filosofia.

Ou será que nada faz sentido além daquele momento? Algo por aí.

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