segunda-feira, 23 de julho de 2007

Li o livro

sobre Muito Longe de Casa, Ediouro
(A Long Way Gone, Ishmael Beah)


Não que eu tenha orgulho em dizer isso, mas uma mentira mudou por completo a maneira como eu senti o livro de Ishmael Beah, “Muito Longe de Casa”. Esbarrei com o autor algumas vezes durante a FLIP, sem nunca conseguir ligar sua calma e cavalheirismo ao que havia lido sobre o livro. Isso porque não, ainda não havia lido o livro. E é provável que não o escolhesse em um passeio por uma livraria na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Sabe-se lá por quê, fui incumbida de entrevistá-lo, o que só foi possível por telefone, após o debate no qual meu choro foi contido pela revolta ao imaginar uma criança passando por tudo aquilo. E aí entra minha mentira: me passei por uma pessoa que havia lido o livro. Achei que seria uma tremenda falta de educação fazer perguntas a um autor sem ter lido seu livro, mas precisava cumprir ordens, e queria muito conversar com ele.

O questionamento que não saía da minha cabeça enquanto pensava na pauta era: o que leva uma pessoa, depois de passar por uma guerra civil em Serra Leoa, ver pessoas morrendo e depois de ter tido que participar dessa guerra, tendo que aprender a matar... O que leva essa pessoa a reviver tudo para fazer um livro?

E eu, do alto de meus bem nutridos 21 anos, ao me esforçar para tentar me colocar no lugar dessa pessoa, concluí que uma parte de minhas motivações seria me redimir, me confessar ou, melhor dizendo, me tornar novamente apta para a vida em sociedade. Não ter que me explicar em cada canto que passasse, esconder meu passado, ou dar satisfações. E foi com genuíno interesse que tive a audácia de transformar meu questionamento em uma pergunta, que Ishmael tranqüila e educamente respondeu, dizendo que tinha escrito o livro porque era uma história que precisava ser conhecida.

Agradeci a entrevista, e o agradeci por ter escrito o livro tendo certeza de que foi uma experiência difícil, mas com o olhar jornalístico que achava que deveria ter fazendo com que eu ainda tentasse pensar em motivações mais... poéticas, ou até “egoístas”. Algo como uma necessidade de escrever, a vontade de se expressar e se fazer ouvir, precisar recuperar suas memórias, ou qualquer bobagem desse tipo.

O que me levou à pergunta inteligente da entrevista, como ele via o título em português, que havia acrescentado a palavra casa ao original (“A Long Way Gone”). Ele disse que realmente o gone poderia se referir a mais coisas, mas que ao mesmo tempo casa para ele e para sua cultura é mais do que o lugar em que você vive. É o seu berço, onde você recebe seus valores, sua ética, sua maneira de encarar o mundo.

Li o livro. Posso dizer que é uma história que precisa ser conhecida, e recebida com corações e olhos abertos. Precisa ser lida, e talvez relida, de modo a evitar que nossa mente ao lê-la se perca em travellings, closes, zooms, cortes rápidos, e outras estratégias cinematográficas que a tornariam mais tragável.

É uma história que deve ser sentida como o que é: intragável, insuportável e, pelos deuses, inaceitável. Espero que os leitores se permitam sofrer o máximo que puderem, mesmo em realidades tão distantes da narrada, e que esse sofrimento se transforme em algum tipo de consciência. E que essa consciência se transforme em qualquer tipo de ação, ou compaixão que seja. Que a leitura desse livro posso transformar a maneira como encaramos, sentimos e interferimos nesse mundo.

Li o livro. E agora vejo, com dolorosa clareza, que se há alguém para ser perdoado ou redimido, somos nós e todos os que não fazem nada. Que seria mais provável que Beah tivesse escrito o livro como maneira de perdoar essa sociedade louca em que todos nós vivemos, e que o fez sofrer mais do que somos capazes de imaginar, e ter uma força que jamais saberemos se temos em nós. E agora sei por que fui a escolhida para entrevistá-lo: por não ser uma jornalista.

Li o livro. E posso agora responder à minha própria pergunta. Ishmael Beah escreveu o livro porque ele é um escritor. Ele é aquele que chegou ao limiar, na beira do abismo, sobreviveu e ainda teve a coragem, e a generosidade, de voltar para nos contar.

3 comentários:

Festa Grog disse...

Cada vez que leio um texto seu, parece que conheço mais um lado seu. Você consegue me emocionar e me educar, me inspirar a ser melhor. Tenho vontade de ser como você. Sou jornalista. Ainda bem que você não é. Você é uma escritora, uma narradora. Você é a pessoa capaz de contar a história.

Parabens. Parabens!!!!!!!!
To muito sem palavras. Emocionante!
ps: me empresta o livro!? hahah

...milhões de beijos...

Bárbara disse...

você não é uma jornalista!

(mas obrigada! hihi)

zilhões.

Festa Grog disse...

nao sei deixar o meu eu de lado. Eu sou uma pessoa com experiencias...isso me controi e constroi tudo ao meu redor!
hihih

=P